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    Arquivo: Edição de 15-07-2006

    SECÇÃO: Crónicas


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    Kete

    Era capaz de apostar, dobrado contra singelo, que não há outra como a minha prima. Esclareçamos: eu tenho muitas primas, bonitas p’ra ninguém botar defeito. A prima a quem me refiro é uma belezura, desculpem os termos brasileiros que intencionalmente utilizo, porque ela foi criada além-Atlântico, parece que as condições climáticas e sociológicas a moldaram linda do jeito que é. Digo mal: do jeito que era, porque há quarenta anos que não a vejo e a imagem que dela guardo é a da juventude, temperada pela sublimação que o decurso do tempo propicia, como se fora uma foto recente que, emoldurada, se coloca sobre uma credência e na qual detemos o olhar sempre que por ali andamos. Não me entendam mal, aprecio a beleza dela como a de qualquer mulher bem talhada capaz de fazer virar o rosto de um homem ao passar, mas nenhum outro sentimento me anima que não a nostalgia de um tempo que se extinguiu mas veio, de armas e bagagens, instalar-se na minha memória.

    ...UM BROTINHO ENCANTADOR NA FRESCURA DOS DEZASSEIS...

    O nosso último encontro aconteceu na sua casa de Botafogo, certo dia em que abalei do Engenho Novo onde então morava, de visita a esses familiares. Era um brotinho encantador na frescura dos seus dezasseis ou dezassete anos e frequentava o nível colegial na área clássica. Antes, tínhamo-nos encontrado só uma ou duas vezes em circunstâncias que agora não sei descrever. Vive no Porto para os lados do Campo Alegre mas, apesar da proximidade e de exercermos a mesma profissão, nunca nos cruzámos. Outros professores têm-me falado nela, porque foi sua orientadora de estágio pedagógico, mas o destino tem-se divertido a furtar-nos as voltas. O mesmo se diga em relação a muitos outros parentes que deixei de ver desde a minha infância e vivem sob o mesmo céu.

    Sempre que alguém me fala dela acentua-lhe o nome e, se eu respondo que é minha prima, julga que estou a brincar. Que o nome é invulgar disso não resta a mínima dúvida. Isto de nomes próprios tem o que se lhe diga. A maioria dos identificadores provém de substantivos. Os adjectivos transformados em nomes próprios são mais raros, mas existem e são conhecidos. Que o diga a menina Perpétua, hoje octogenária mas ainda menina, porque fez voto perpétuo de castidade e pratica o bem desde que se entende como gente; a minha tia-avó Preciosa, nome que conota grande valor e rara beleza o que nela resultou pois, quando a conheci, ainda conservava traços correctos e de grande distinção; Jucunda de que ouvi falar algures mas que, segundo diziam, não merecia esse nome, em permanência zangada com o mundo.

    ...O PAI TRABALHAVA NUMA EMPRESA DE EXPORTAÇÃO...

    A minha prima teve direito a um nome que não acrescenta à detentora nenhum significado especial, porquanto o seu progenitor estava longe de tal preocupação no momento em que lhe determinou a identidade. A história pode contar-se como segue:

    Quando ela nasceu, a família Ferreira vivia em Matosinhos e o pai trabalhava numa empresa de exportação de madeiras com destino a Inglaterra e aos Estados Unidos entre outros países. Na sua actividade tinha contactos frequentes com ingleses e norte-americanos. Qualquer que fosse a razão, quis que a criança se chamasse Kete, presumo que inspirado no nome Kate tão comum em países anglo-saxónicos. Na repartição de Registo Civil da sua área de residência perguntaram-lhe que nome desejava dar à filha.

    – Kete – respondeu muito seguro de si. A funcionária julgou não ter compreendido bem e pediu que repetisse.

    – Kete – volveu ele, agora com menos convicção, mas sem compreender a insistência.

    – Desculpe, mas não pode registá-la com esse nome. Só são aceites nomes portugueses. – informou.

    ... O TIO FERREIRA MOSTROU-SE DEVERAS ATRAPALHADO...

    Como não viesse prevenido para tal situação, o tio Ferreira mostrou-se deveras atrapalhado. “Que faço eu agora?” – indagou ao botão do casaco que consultava em momentos tais. Entretanto a menina, ao vê-lo assim perplexo, sugeriu que escolhesse um nome parecido, mas que fosse português. Então é que as coisas se complicaram. Tinha que decidir ali e naquele momento, porque pedira ao chefe o tempo necessário para ir ao Registo Civil e não podia alegar o mesmo motivo para voltar no dia seguinte.

    – Se gosta tanto desse nome, procure um que seja bem parecido – aconselhou a jovem.

    Mais tarde ele confessava que poucas vezes na sua vida se sentira tão confuso como nesses breves momentos. A palavra mais parecida que lhe ocorreu foi...

    – Quieta. – disse.

    E Quieta ficou. Mas para familiares, amigos e conhecidos ela é Kete não importa a origem do nome.

    Por: Nuno Afonso

     

     

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