Cumprindo dolorosamente o seu karma, agora é a “Cospe Aqui”
Aparecida em fins de Abril, lançada em pleno auge da edição de 2006 do Festival Copyriot, o fanzine “Cospe Aqui” dificilmente poderia confundir-se com um daqueles fanzines meteóricos, efémeros, e produto de um projecto fechado ou pessoal.
O título é a nova reeencarnação dos anteriores (e como tal assumidos pelos seus editores) “Paint Sucks”, “Lamb-Haert”, “Hum, Hum! Estou a Ver!...” e “Estou Careca e a Minha Cadela Vai Morrer!”, cujos títulos constituem já, em parte, um projecto-programa).
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Vinheta MIGUEL CARNEIRO |
Os editores, Miguel Carneiro e Marco Mendes, assinam nesta “Cospe Aqui” algumas das pranchas mais maduras graficamente – mas a isto voltaremos, apontando um reverso –, num conjunto em que, sendo embora um pouco desigual, se saúda a diversidade de propostas.
Participam neste número, além dos citados Miguel Carneiro e Marco Mendes, Didi Vassi – uma história de infortúnios que parece perigosamente autobiográfica –, Mário Augusto – não com pranchas de BD, mas com um texto, controverso (“Lusofobia”), que procura reflectir sobre a realidade da cultura étnica brasileira e da sua relação com a potência colonial, Manuel João Vieira – com uma série de pranchas que parecem aliar o gosto de Crumb ao de Bosch (sim, esse mesmo do Jardim das Delícias) –, Janus – com a sua técnica peculiar dos grandes espaços de cor preenchidos com generosos traços finos, negros e paralelos, que fazem as vinhetas avarentas de brancos –, Nuno Sousa – numa provável private joke, a duas páginas, embora sinais contraditórios o possam também desmentir, como o sósia de Shakespeare –, Carlos Pinheiro – que ilustra em várias pranchas com um só desenho algumas estórias –, André Lemos – muito expressionista –, João Alves Marrucho – que além de duas páginas gráficas, reflecte sobre a indústria musical e a sua rede de apropriação e sobre o universo dos novos artistas portuenses, João Marçal – o fonema interpretado à letra –, Mike Diana – talvez a expressão mais acabada do underground nesta “Cospe Aqui” – e Arlindo Silva – retratos.
Deixamos para o fim Miguel Carneiro e Marco Mendes. O primeiro faz lembrar, em certa medida, Francis Masse (“Les Deux du Balcon”), embora a proposta semiótica em Carneiro seja outra.
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Vinheta MARCO MENDES |
O PROJECTO DA “COSPE AQUI” E PISTAS DE FUTURO
De Marco Mendes – que assina duas histórias –, adivinha-se a facilidade do traço, mas é também visível, nele, em Miguel Carneiro, e nas restantes propostas, um certo défice, não de azedume, provocação ou mesmo vómito – tudo isso na mais profunda expressão de dignidade que consagra o fanzine/revista (agora vem adornada com depósito legal, contactos e essas coisas todas...) –, mas um défice, digamos, de horizonte, que fica sempre um pouco reduzido à expressão adolescente do eu, nas suas vicissitudes mais vivenciadas ou traumáticas.
Exercícios em grande parte, psicanalíticos, diríamos que ainda falta ao fanzine (revista?) uma ambição maior, de abarcar a vista um pouco por cima do ombro, furando as grades em cujo interior convivem (convivemos) autores – muito jovens –, e leitores, esquecidos que somos apenas uma ala perdida do grande zoo.
Cumplicidades que correm assim o risco de restar cumplialdeias, se apenas descarnadas em cima da mesa da cozinha, ou do estirador do atelier, para ser mais preciso.
O potencial do fanzine, não fica contudo beliscado por algumas debilidades, diríamos que se nos afigura uma etapa do processo de lapidação das propostas dos autores e que, daí à delapidação, tanto pode ir um pequeno passo de arrogância e vaidade, como, cremos, um distanciamento sofrido, conquistado, laboriosamente esculpido, em que se apaga mais a presença do eu enquanto massa, para poder surgir o outro eu, insubmisso e presente de si, mas cuja figuração embora como indivíduo, retrata o mundo.
Mais um passinho, oupa!...
Por:
LC
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