O Lucas
Minha mãe dizia que todos temos os nossos anjos que se cruzam connosco em lugares incertos, sem horas marcadas. São uma espécie de vigilantes.
Corria o mês de fevereiro do ano 2023 quando após longos dias de frio e chuva fomos contemplados com um domingo cinzento e um céu onde nuvens bailavam, arrastando suas caudas esbranquiçadas e preguiçosas. O sol arrojado espreitava, emprestando à neblina o seu brilho saltitante.
Sentia-se a solidão, o frio húmido nas casas. Resolvi caminhar sem rota certa, até que as pernas se queixassem.
Andando ao longo do passeio da rua, revisando interiormente a minha vida, as minhas falhas e a minha espiritualidade, comigo se cruzou um menino, talvez de 12 anos de idade. Vestia roupa solta e um blusão que agasalhava aquele corpo franzino. Num relance, a minha atenção dirigida para uma sacola de pano que lhe dava o aspeto de um figurante do musical “OS MISERÁVEIS”, a que eu tinha assistido há alguns anos, em Londres.
Nesta rápida passagem cruzámos os nossos olhares e alguns passos à frente voltámo-nos e em uníssono soltámos um grande e aberto sorriso.
Como adivinhou a minha necessidade intrínseca daquele momento? Surpreendida, recordei passagens doces já esquecidas.
Aquele menino e o seu sorriso espontâneo acrescentaram mais sol e ternura ao meu íntimo e a necessária certeza de que tinha encontrado um daqueles anjos citados por minha mãe.
O meu anjo desapareceu por longo tempo. Não o tinha esquecido, quando, em uma caixa de supermercado, olhando inadvertidamente para o lado, lá estava ele com a sacola cruzando o peito, caindo orgulhosa ao longo do seu corpo emagrecido.
Esperei que saldasse a sua conta e interpelei-o. Contei-lhe o cruzar do nosso olhar, o sorriso espontâneo de há um ano atrás. Iniciando a sua marcha respondeu que não se lembrava. Perguntei-lhe o seu nome e sem parar balbuciou: LUCAS. Voltei a insistir. Onde moras? Respondeu, apontando para a direita. De imediato olhando para a esquerda, eu disse: moro para acolá.
Não manifesta qualquer afeto ou qualquer contentamento, pensei eu. Atenta, reparei que ao sair do supermercado estava a sorrir, sozinho, quase se escondendo junto ao muro. Cenário este projetado no vidro lateral do edifício que se assemelhava a um espelho.
Afinal algo aconteceu naquele coração.
Fiquei preocupada, naquele dia quase gelado, o Lucas, sim agora já sabia o seu nome, usava roupa não adequada ao tempo frio de inverno. Os seus pezinhos destacavam-se por mal aconchegados e nada protegidos por umas chinelas de dedo, usadas em época quente.
Desde então, faço compras desnecessárias e todos os dias os meus olhos varrem os lugares e ruas da vizinhança, aguardando com esperança um reencontro para retribuir da maneira mais adequada aquele sorriso de Anjo.
Eugénia Ascensão
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