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    GENTE DA NOSSA TERRA

    Marília Freitas Cardoso: uma história de vida com 100 anos!

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    À primeira vista, ninguém lhe daria 100 anos de idade! Senhora de uma lucidez de fazer inveja a muitos jovens, exibindo uma boa disposição e sentido de humor cativantes, aliados a uma fabulosa memória, onde estão guardados retratos vivos do passado.

    Ermesindense de gema, aqui nasceu, cresceu, casou e toda a vida viveu, com exceção de um pequeno período de tempo, em que residiu em Tavira.

    Marília Magro de Freitas Cardoso completou a bonita idade de 100 anos, no passado dia 13 de outubro. Este facto assinalável, levou-nos até à residência de sua filha, onde vive, tendo o resultado dessa visita sido uma agradável conversa com uma Senhora, com S grande, que provavelmente deve ser hoje «a cidadã mais antiga de Ermesinde», segundo ela própria faz questão de dizer, com orgulho.

    A primeira pergunta que se impôs, foi no sentido de desvendar o segredo da sua longevidade. A resposta não se fez esperar e com uma boa pitada de humor à mistura, retorquiu: «Olhe, é Deus que não me quer ao lado Dele. Sou tão ruim, que Ele não me quer lá. Ele deve dizer: deixa-te andar por aí e os outros que te aturem», disse por entre simpáticas gargalhadas. A longevidade é, na verdade, uma característica da sua família, contando-nos que teve uma tia materna que também chegou aos 100 anos, tendo falecido a um mês de completar os 101. «Era solteira e dizia-me que chegou aquela idade, porque nunca aturou nenhum homem», lembra por entre mais um par de gargalhadas.

    Marília Freitas Cardoso é, como já referimos, natural de Ermesinde, mais concretamente da zona de Portocarreiro, onde ainda hoje reside. Os seus pais eram de outras bandas, não muito longe daqui: o pai, de Vila Nova de Gaia e a mãe, do Porto. Conheceram-se precisamente em Portocarreiro, no saudoso carro elétrico que ali passava. A família da Dona Marília faz, aliás, parte da História de Ermesinde, já que o seu avô paterno, Manuel Alves de Freitas, foi o fundador da antiga Fábrica de Tecidos de Sá. Portugal vivia na época os primeiros anos da implementação da República, anos de alguma turbulência, pautados por manifestações e instabilidade política. Com medo de que “por aí” viesse uma revolução, o avô de Marília Freitas Cardoso resolveu vender a fábrica, segundo nos conta. «Ele temia uma revolução e optou por vender a fábrica. Foi então que um grupo de empregados seus se reuniram e compraram-lhe a fábrica». Entre esse grupo figuravam os nomes de dois ilustres cidadãos da História de Ermesinde, Amadeu Sousa Vilar e Manuel Pinto de Azevedo, segundo nos disse a Dona Marília. «O meu avô fez mal em vender a fábrica, pois tinha cinco filhos, sendo que dois dos filhos homens, ali trabalhavam com ele», opina. E um dos filhos do industrial Manuel Alves de Freitas foi precisamente o pai da Dona Marília, que conheceu a mãe desta cidadã hoje centenária, numa viagem de elétrico a caminho de mais um dia de trabalho, na Fábrica dos Tecidos de Sá. Mais tarde, viriam a casar e aqui nasceram as duas filhas do casal, sendo Marília Freitas Cardoso a mais velha.

    Conta que o avô materno era transmontano, de Montalegre, escrivão de profissão e quando veio trabalhar para o Porto acabou por se fixar em Portocarreiro. Foi aqui que a família cresceu e foi ali também que Marília Freitas Cardoso aprendeu as primeiras letras. Recorda que numa época em que não havia qualquer escola em Ermesinde, fez a instrução primária em casa. «A professora vivia em nossa casa e dava-nos as aulas. Mais tarde, um senhor muito importante da terra, o Alberto Taborda, conseguiu que fosse construída a Escola do Carvalhal, a primeira escola da freguesia. Mas não cheguei a frequentá-la», diz. Concluída a escola primária, continuou os estudos no Porto, no Colégio de Nossa Senhora da Paz, onde desenvolveu o gosto por uma das suas paixões da altura: a literatura. Lembra que o colégio possuía uma grande biblioteca e enquanto a esmagadora maioria das alunas ia para o recreio brincar, «eu preferia ir para a biblioteca ler». Ficou-se pelo antigo 7.º ano, mas queria ter ido mais longe nos estudos. Aliás, com o fim da etapa escolar morreu um sonho de menina: ser professora. «Sempre tive o desgosto de não ter sido professora. Gostava muito de crianças e de ler. Mas na época o meu pai achava que as meninas não podiam continuar a estudar. Era assim a mentalidade daquele tempo», lamenta Marília Freitas Cardoso, que toda a vida foi doméstica.

    Como filha de Ermesinde que é, a nossa entrevistada tem uma ideia clara de como era a freguesia nas primeiras décadas do Século XX. Recorda-se de uma terra com vincados traços de ruralidade, com poucos habitantes, poucos carros e onde os únicos meios de transporte público eram o elétrico (que passava, aliás, à porta de sua casa) e o comboio. «Havia poucas famílias e dava-mo-nos todos bem». E por falar em família, a sua convivia regularmente com as mais ilustres da freguesia, recordando a nossa entrevistada os nomes das famílias de Costa e Almeida (que foi presidente da Câmara de Valongo), de Alberto Taborda, de Maia Aguiar, de Luís Soares (sogro do falecido Dr. Armindo Lage), entre outras. «Convivíamos muito entre todos. O Dr. Costa e Almeida gostava muito de mim, pois teve uma filha que nasceu no mesmo dia que eu. Recordo-me que houve uma epidemia de garrotilho e ambas fomos afetadas por essa doença. Na sequência dessa infeção, ela morreu e eu fiquei».

    Lembra-se também que a vida em Ermesinde era muito mais pacata do que é hoje, além de que, não havia a liberdade que há atualmente, como fez questão de referir. «Naquele tempo só saía de casa para ir à missa. Para ir ao Porto, por exemplo, tinha de pedir permissão. Passávamos muito tempo em casa, onde fazíamos muitos trabalhos à mão, como por exemplo, bordados, rendas, tricot..., era uma santa vida», diz com saudade.

    Católica devota, a Dona Marília lembra-se dos domingos de eucaristia, passados na residência de Alberto Taborda. «Ele tinha uma capela na sua quinta, onde as famílias amigas e conhecidos dele iam à missa, ao domingo». Sobre Alberto Taborda, recorda ainda um momento triste na vida deste ilustre cidadão: a morte dos seus filhos, ainda pequeninos. «Lembro-me de ir à capela e de ver os caixõezinhos brancos. Em relação aos filhos, ele foi muito infeliz».

    Ainda num registo de comparação entre o passado e o presente, recorda-se de uma freguesia de Ermesinde com muitas bouças. «Isto aqui à volta era tudo bouças. A zona da Gandra, por exemplo, era tudo campos, pertencentes à família do falecido Dr. Moutinho. Esta zona de Portocarreiro, da linha de comboio para cima, alguns dos terrenos pertenciam à minha família. Como muitos deles eram baldios, vinham para cá viver muitos ciganos. Quando era nova, recordo-me de assistir a muitos casamentos ciganos, em que as mulheres atiravam um pote de barro ao chão e diziam que o número de cacos partidos seria o número de anos que iria durar o casamento. Era muito engraçado».

    E por falar em matrimónio, em 1955 a nossa interlocutora casou-se, em Fátima, dada a sua grande devoção pela Nossa Senhora. O seu marido era também um cidadão natural da nossa freguesia, militar de profissão. Continuou a viver na zona de Portocarreiro, próxima dos seus progenitores, acedendo assim a um desejo do seu pai, muito protetor para com as suas duas filhas, que quis que estas mesmo depois de casadas, vivessem perto dele. É, aliás, já depois de casada que tem a sua única experiência fora de Ermesinde, pois viveu um curto período de tempo em Tavira, onde residiu com os seus dois filhos e o marido, em virtude deste ter sido destacado para comandar o quartel de infantaria, daquela localidade do Algarve.

    Hoje, do alto dos seus 100 anos, a Dona Marília é uma mulher feliz, na companhia dos dois filhos, de dois netos e três bisnetos. Saudades do passado? Algumas, sobretudo de familiares seus que já “partiram” deste Mundo.

    Só nos resta agradecer a extrema simpatia com que a Dona Marília nos recebeu em casa da sua filha e dar-lhe os parabéns por estas 100 primaveras, bem vividas.

    Por: Miguel Barros

     

     

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