Subscrever RSS Subscrever RSS
Edição de 30-04-2024
  • Edição Actual
  • Jornal Online

    Arquivo: Edição de 31-01-2016

    SECÇÃO: Crónicas


    foto

    Os indesejáveis

    Sento-me no muro, sob a amoreira de baixo, onde o tio Papim fazia as suas ligas de palha serôdia a que o Sá de Castrelos dava, depois, forma de chapéus. Ali passava os seus diasmexendo os dedos das mãos com a desenvoltura que às pernas lhe faltava exigindo duas muletas para se locomoverem. De vez em quando, suspendia o trabalho e, a brandir ameaçadoramente uma das cajatas (1),tentava afugentar os garotos que açoitavam a amoreira de cimacom pedradas correndo em seguida para recolher os saborosos frutos negros, dulcíssimos, que metiam à boca sem sequer os lavar na água da bica ali ao lado. Indiferentes às ameaças e imprecações do homem, voltavam à carga até que a senhora professora os chamava, da janela, para retomarem os trabalhos escolares e ouvirem as suas reprimendas a que só aparentemente davam ouvidos. Era também ali que, na minha juventude, jogávamos à palmada e ao perugalo (2).Relembro pessoas, costumes e o idílico cenário envolvente que já não existe, incluindo o muro onde, imaginariamente, me sento. Muita água do fontanário correu por debaixo do caminho hoje "urbanizado" como todos os espaços públicos da aldeia, com nomes de ruas e de largos.

    A mudança ocorreu, no entanto, quando a autoridade camarária considerou oportuno, mas teria sido antecipada de mais de sessenta anos se, quando o então secretário da Junta de Freguesia deu início ao projeto de calcetamento dos arruamentos da aldeia,lhe tivesse dado o despacho solicitado. Lembro-me dos topógrafos, com seus tripés, medindo os níveis do solo e anotando dados em folhas e de um engenheiro com o curioso apelido Gajo percorrendo a aldeia, recanto a recanto, caminhos acima e abaixo, fazendo esboços e cálculos que, mais tarde, no estirador, haviam de permitir a avaliação dos trabalhos a realizar e respetivos custos. Haviam de permitir, se o projeto não fosse raridade em aldeias da zona, logo, potenciador de outros do mesmo género, insuscetível de aceitação à luz dos tacanhos critérios da época, de poupança a qualquer custo. Estávamos a meio do século XX, tempo de estagnação neste país mas já acelerando para uma época de grandes avanços a nível mundial. Vinte anos depois, pedi ao secretário da Junta de Freguesia, em exercício nessa altura, que averiguasse que destino tivera o supradito projeto. Pediram um prazo para se proceder a averiguações que, uma vez concluídas, deram "em águas de bacalhau", isto é, nada existia nos arquivos da Câmara Municipal sobre todo aquele processo: nem requerimento, nem estudos técnicos, nem pareceres, menos ainda despacho. Esfumara-se, sem deixar o menor vestígio como se um prestidigitador o tivesse feito desaparecer num passe de mágica. Os detalhes que acima referi teriam sido apenas um belo sonho de criança, à época com oito ou nove anos, que nunca tivera nem haveria de ter propensão para engenharia ou algo relacionado com cálculo? Posso garantir que não, porque o secretário da Junta era o meu pai e eu já tinha idade para guardar bem o que ocorria à minha volta.

    O Largo d'à Bica era, se não geograficamente, ao menos como referência, o centro da povoação. Quem ali passava, com sede ou sem ela, dirigia-se ao fontanário e inclinava-se para beber uns goles de água saborosíssima que permanentemente jorrava do cano; as crias, soltas, a caminho do lameiro ou dele volvidas, ou ainda jungidas a puxar um carro, sorviam litros da água do tanque; as mulheres atualizavam mexericos enquanto as cântaras se enchiam; os garotos bebiame, frequentes vezes, subiam à placa metálica que sustinha os recipientes, escorregavam nos limos e tomavam banho forçado, chegando a casa "como pintos" eobrigando as mães a trabalho extra para lhes tirar a roupa, enxugar-lhes o corpo e a vestimenta. Era sobre as lajes do muro de cima que a autoridade falava ao povo, reunido após a celebração da Missa de domingo, o mordomo das Almas fazia o arremateda esmola recolhida de casa em casa na véspera e os homens se sentavam para conversar, à sombra das ditas amoreiras, nas tardes calmosas de verão; era "sala de visitas" para quem vinha de fora e pedia informações; ponto onde todos os caminhos se encontravam e dali prosseguiam em diversas direções; mercado aberto para as vendedeiras de figos, fruto que por lá escasseava, peças de loiça em cerâmica vidrada que as mulheres achavam úteis e atraentes para levarem a comida à mesa ou para a guardarem, de peixe que o sardinheiro (3) transportava sobre o jumento, em caixas, coberto de sal.

    VISTA SOBRE ALIMONDE
    VISTA SOBRE ALIMONDE
    Com certa regularidade, por ali transitavam troupes de ciganos. Vinham em carroças, puxadas por muares, homens iguais a outros homens no aspeto físico, nos modos e no traje, mulheres jovens e madurasenvergando roupas diferentes das que usavam as mulheres aldeãs com enormes argolas de ouro nas orelhas, miúdos e miúdas de ranho abundante, descalços, sujos e remendados, entre grandes cestas, sacos de remendos, latos de folha, caçarolas, copos de latão e sombreiros (4) pendurados, braçadas de fiolho (5)somente utilizado em infusões para acudir a males do fígado ou do estômago mas a que os ciganos davam outras aplicações culinárias, tudo numa desordem que só eles conseguiam entender. Presos àquele "andor", vinham burros, mulas, machos ou éguas que constituíam a sua mercadoria a negociar nas aldeias mas, sobretudo nos tourais de vilas e de cidades da região. Estabeleciam-se em cabanal ou canto disponível que boas almas lhes disponibilizassem e, enquanto as ciganas mais velhas tomavam conta da miudagem, as restantes enfiavam cestas nos braços e saíam pedindo porta a porta. Curiosamente, apesar das distâncias entre povoados, quando ainda não existiam telefones e a comunicação só podia fazer-se pessoalmente, a vinda dos ciganos era previamente conhecida pelos moradores do lugar que tomavam as devidas cautelas, fechando as portas das casas que, por hábito, ficavam abertas, vigiando os passos das mulheres que pediam não fossem deitar mão a objetos que tivessem ficado fora de casa, acorrendo a propriedades que ficassem no caminho por eles trilhado, porque se constava que iam arrancando batatas ou colhendo frutos de árvores por onde passavam. Verdade ou não, com receio de generalizar, não eram merecedores de confiança.

    Na compra e venda de bestas, consistia a fonte de maior rendimento para estes nómadas fosse nas aldeias que visitavam, fosse nas feiras tradicionais em vilas e cidades da área que em que se movimentavam. Aldeão que precisasse de um burro e encetasse conversa com o cigano seu dono teria que ser muito perspicazpara fazer o seu negócio em boas condições porque eles dominavam a arte de bem negociar e, sobretudo, de engrampar (6) os potenciais compradores. Animal que eles montassem, ainda que velho e cansado, parecia dotado de um musculado par de asas invisível. Toda a gente sabia mas ninguém era capaz de descobrir o truque por eles utilizado para estimular o jerico. Seria a forma de o tocar com os pés em lugar mais sensível, a maneira como emitia e repetia a interjeição de estímulo ou a combinação das duas técnicas? Negócio fechado, cigano desaparecido, freguês ansioso por "tirar a prova". Por mais que tentasse imitar o cigano, o animal mostrava-se incapaz de repetir a performance. Com o tempo, o freguês chegava à conclusão de que tinha sido ludibriado. Demasiado tarde porque o tipo eclipsara-se e não havia maneira de o "chamar a contas". Por essas e por outras é que os ciganos eram considerados pouco sérios, trapaceiros, violentos, perigosos. Fugir deles era o único remédio. Havia quem tentasse compreendê-los em vez de os excluir. Ocorre-me a lembrança do Senhor Padre Gomes, um sacerdote já bastante idoso quando o conheci, a quem chamavam "o apóstolo dos ciganos", pelo esforço que desenvolvia para ultrapassar as desconfianças entre ciganos e aldeões na sua ação pastoral. Como "não há regra sem exceção", havia, em Bragança, um cigano sedentário e duma honradez a toda a prova. O Sr. Joaquim "Cigano" era um homem plenamente integrado na sociedade e por todos respeitado. Adquirira casa e terras, constituíra família e não havia, na cidade, quem não o conhecesse e estimasse.

    Do meu ponto de observação imaginário, vejo passar dois homens transportando, ao ombro, um grosso pau onde vinha amarrado o cadáver de um lobo. Estes animais, tradicional e universalmente malquistos como atestam a literatura e a cultura popular, atuavam em alcateias e dizimavam parte dos rebanhos, não obstante a presença dos cães que os guardavam, com frequência eles próprios vítimas dos ataques. Matá-los era um benefício para quem possuía ovelhas e/ou cabras e para a populações em geral. Quando alguém conseguia abater um desses "malfeitores", com ajuda de familiar ou amigo, era costume andar, de terra em terra, mostrando o troféu e recolhendo o produto da solidariedade dos moradores. Lobos e raposas eram os únicos predadores que existiam em meados do século passado mas, enquanto as raposas vinham muitas vezes assaltar as capoeiras da povoação, os lobos não se acercavam das povoações.

    (1) Cajata (regionalismo) - bengala, muleta. (2) Perugalo (regionalismo) - nome que davam a um jogo tradicional praticado ao ar livre. (3) Sardinheiro - vendedor ambulante de peixe. Era-lhe dada essa denominação porque havia uma procura bem maior de sardinhas do que de qualquer outra das espécies que transportava. (4) Sombreiros - guarda-chuvas. (5) Fiolho (regionalismo) funcho. (6) Engrampar (regionalismo) - enganar, iludir, trapacear.

    Por: Nuno Afonso

     

    Outras Notícias

    · Feliz aniversário menina

     

    este espaço pode ser seu Este espaço pode ser seu Este espaço pode ser seu
    © 2005 A Voz de Ermesinde - Produzido por ardina.com, um produto da Dom Digital.
    Comentários sobre o site: [email protected].