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    Arquivo: Edição de 16-05-2014

    SECÇÃO: Crónicas


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    Os contrassensos de uma revolução

    Se eu evitasse abordar o tema de Abril, deixando esta reflexão para trás, seria como passar na vida sem ter vivido algumas das suas etapas, criando-me um espaço inócuo, que sempre ficaria vazio, ainda mais quando vi a partilha de uma frase de Salgueiro Maia, onde li: «Não se preocupem com o local onde sepultar o meu corpo. Preocupem-se é com aqueles que querem ajudar a sepultar o que ajudei a construir» (in: “Correio do Ribatejo”). Tentei ir atrás da data em que esta frase terá sido escrita. Ao fazê-lo, tive que ir de encontro à vida de um “capitão de Abril”, retrocedendo no mínimo, 22 anos – altura em que faleceu.

    Também eu localizei a minha vida 22 anos atrás e compreendi este alerta velado que nos fazia. Era o tempo em que eu já era cética em relação a ideologias e dogmas. Muito mais tarde penso que esse “estado de espírito” se deveu ao facto de começar a pensar por mim mesma. Uma das falhas que acuso a essa altura foi ter interrompido um direito que me foi oferecido e é um dos pilares da democracia – o direito de escolher através do voto, de forma livre. Mais tarde, também por ter pensado por mim mesma, fui vendo que o “naipe” dos que iam sendo escolhidos pouco a pouco deixavam cair direitos, que até eles próprios tinham defendido, de forma acérrima. Senti a minha quota-parte de culpa e tentei nunca mais falhar ao dever cívico de votar.

    Em tempos de hoje, ao ter ido de encontro à história de Salgueiro Maia, percebi o quanto ele terá acreditado na liberdade e na democracia. Francisco Sousa Tavares escrevia a uma dada altura: «Dominou calmamente, no Terreiro do Paço,…dominou o brigadeiro que se lhe quis opor e, pela calma fixa do seu olhar, dominou um a um os homens que receberam ordens para disparar sobre ele. No Carmo dominou tudo e todos: dominou a guarda, dominou o Governo, dominou os ministros que choravam, dominou a multidão e dominou o ódio coletivo dos que gritavam vingança. E dominou o tempo e a vitória que veio ter com ele, obediente e fascinada…».

    Isto são acontecimentos relatados de um Abril de 1974, a um homem, capitão, que a Francisco Sousa Tavares também merece as seguintes palavras para o caracterizar – «…Era um militar de bravura inigualável, mas também extremamente sensato e um homem de coração…». Não me surpreendeu quando li que tinha recusado ser comandante da Escola Prática de Cavalaria, membro do Conselho da Revolução, adido militar, etc.. Tudo tinha recusado porque a única ambição que tinha era continuar em Santarém, com o posto que ocupava. Respondia: «O que lá vai, lá vai...». O que me surpreendeu foi que, pela lealdade aos princípios que defendia, tenha pago uma fatura demasiado cara – entre 1977 e 1984, nós, os que beneficiámos de uma liberdade, contribuímos para que ele tivesse sido «completamente ostracizado», conforme li.

    Como cidadã eu usufruía de benesses conseguidas por parte de quem acreditou por mim (adolescente que eu era). Senti-me envergonhada quando agora li – «… Como que punido por ter feito a revolução». Aconteceu-lhe a ele como a muitos outros militares de Abril. «Até já poderemos ser acusados e presos por implicação no 25 Abril» – chegou a confessar a João Paulo Guerra. Desalentado, tentou um último reconhecimento da hierarquia militar. Em 1988, já doente, solicita uma irrisória pensão por «serviços excecionais ou relevantes» prestados ao País. Essa pensão foi-lhe recusada, ao mesmo tempo que era atribuída a dois antigos inspetores da PIDE». Rendeu-se a uma doença em 4 de abril. Eu sei que entre as grandes patentes presentes no cemitério, no mínimo, quatro Presidentes da República assistiram à descida à terra de um caixão modesto que terá transportado um Homem, com as divisas do capitão, que sempre livremente quis ser.

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    Apercebi-me que nós, os que escolhemos os “maestros do nosso País” indiretamente teremos contribuído para a deceção e amargura deste homem. Demasiado ocupados em tentar recolher todos os proventos da democracia em que terá sido dos primeiros a acreditar, fomo-nos alheando da derrapagem a que um processo democrático também pode conduzir. Continuando a pensar por mim só, tenho consciência que em tempos de ditadura eu nunca teria tido a oportunidade de passar por vivências que foram únicas, em tempos únicos e que nada têm a ver com questões de “latifúndio” ou “proletariado”, “rico” que eu queria ver “ pobre” ou “pobre” que devia viver como “rico”.

    Quando ouço os apelos de muitas pessoas ao “antigamente”, acredito que quisessem voltar, mas guardando os proventos recolhidos ao longo destes 40 anos, muitos dos quais seriam impensáveis obter em tempos de ditadura. Voltar ao “antigamente” não me assustaria pelo facto de se voltar a tempos do “beija-mão” ou da subserviência. Isso nunca deixou nem deixará de existir – mais do que ser apanágio de uma sociedade, aprendi que isso é inato do ser humano. Uma atitude que até é da “praxe” e que passa por qualquer estrato social e mesmo académico. Há tempos atrás um estudante universitário dizia na televisão que estes “rituais” existem para preparar as pessoas para a atitude de “baixar a cabeça” , num gesto que pode ser apanágio dos fracos mas também uma atitude de nobreza dos fortes.

    A perda da liberdade, para mim, tem a ver com abertura de fronteiras, tem a ver com liberdade de expressão, tem a ver com ausência de opressão, tem a ver com respeito, tem a ver com educação, oportunidade em igualdade de circunstâncias e o direito de se escolher. No funeral de Salgueiro Maia, alguém terá dito: «Mesmo depois de morrer o Maia continua a servir sem se servir». Sei que a título póstumo atribuíram-lhe o que podiam como mérito mas, mesmo assim, a pensar por mim só, em tempos de um Abril de 2014, penso que não ousaria usar o estandarte de Salgueiro Maia para defender a perda da minha liberdade. Ele fez mais do que a parte dele e fui eu que não fiz a minha. Também, em tempos de Abril de 2014 (a exemplo do ano passado), volto a sentir a necessidade de fixar a mensagem que me passa o quadro de Candido Portinari, “Os Retirantes” (1944). Olhando-o sobre diferentes perspetivas, revejo nele tudo aquilo em que nos estamos a transformar – a decadência de uns, a avareza e a ganância de outros, a inveja de tantos outros e a falta de bom senso de uns tantos mais.

    Edgar Degas disse que «Arte não é o que você vê, mas o que faz os outros verem». A pensar por mim só, olho para as obras de Candido Portinari e percebo que sendo ele um expressionista, utilizava a sua arte para dar a conhecer a realidade social do seu país (Brasil), na primeira metade do Séc. XX. Curiosamente, é uma realidade que continua a refletir-se em inícios do século que se segue mas que agora transpôs fronteiras e nos “abraça” a todos, de perto. Falo da crise, da descrença, da ausência de valores e de expetativas, que em linguagem de arte, são de dialeto universal, pois com Portinari isso percebe-se através das suas telas, quer olhando “Os Retirantes”, mas também outras onde vemos meninos “universais”, que brincam ao baloiço, que jogam à bola, que lançam papagaios de papel, etc..

    A sentir por mim só, além de se expressarem na língua de Camões, encontro outro denominador comum entre Salgueiro Maia e Portinari – a fidelidade a uma causa. Salgueiro Maia, não abriu mão dos seus princípios e da humildade que o caracterizou e Portinari (que estava proibido de pintar pelo mal que as tintas faziam à sua saúde), que não conseguia afastar-se do apelo das telas que não renegavam as suas origens humildes, e entregou a sua vida à pintura, morrendo por intoxicação provocada pelas tintas. Uma coisa que infelizmente os distingue foi o facto de Candido Portinari ter recebido o reconhecimento do seu País em vida e o Capitão Salgueiro Maia (o militar que teve a arte de ajudar a serenar ódios e que serviu um ideal, sem se servir), tivesse merecido a distinção do seu país somente a título póstumo.

    Quando atualmente começo a ver proliferar rostos de um passado (que fui educada para respeitar e continuo a fazê-lo) em que são usados vaticínios a que ninguém terá ligado nenhuma, eu, como portuguesa que pensa e sente por si mesma, posso fazer o “mea culpa” e assumir ter falhado na parte que tocou e prontificar-me para contribuir no que ainda se irá a tempo de mudar. O que não posso (nem quero) é dizer ao mundo que no século XXI eu não sou capaz de viver num Estado democrático pedindo ao tempo que volte para trás, de novo.

    Por: Glória Leitão

     

     

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