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    Arquivo: Edição de 16-05-2014

    SECÇÃO: Património


    TEMAS ALFENENSES

    Senhores e escravos na Alfena dos séculos XVII e XVIII

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    Numa manhã soalheira  do mês de agosto do ano de 1444, uma multidão vinda da cidade, dos arredores e de terras vizinhas, acorreu ao porto de Lagos, no Algarve, para assistir a um acontecimento inusitado. 

    Correra célere a notícia da iminência do desembarque de um grande carregamento de escravos, transportados desde a costa africana pelas caravelas do Infante D. Henrique.

    Aliás, o próprio Infante, cuidando dos seus interesses, pois cabia-lhe um quinto da "mercadoria", «montado num poderoso cavalo», não deixou de comparecer no local onde os escravos já desembarcados estavam a ser repartidos por lotes para, de seguida, serem vendidos.

    Este episódio encontra-se exemplarmente relatado pelo cronista da corte de D. Afonso V, Gomes Eanes de Zurara que, não conseguindo conter a comoção que o invadiu, escreveu para a posteridade:

    «Se as brutas alimálias, com o seu bestial sentir, conhecem os danos das suas semelhantes, que queres que faça esta minha humanal natureza, vendo assim ante os meus olhos aquesta miserável companha, lembrando-me de que são da geração dos filhos de Adão».

    E, continuando, Gomes Eanes de Zurara, a sua comovente descrição :

    «Uns tinham as caras baixas e os rostos lavados em lágrimas; (...) outros estavam gemendo mui dolorosamente, esguardando a altura dos céus, (..) bradando altamente, como se pedissem socorro ao Pai da natureza, (...).

    Mas para seu dó ser mais acrescentado, sobreviveram aqueles que tinham cargo de partilha e começaram a apartá-los uns dos outros, a fim de por os seus quinhões em igualeza; onde convinha a necessidade de se apartarem filhos de pais, as mulheres dos maridos e os irmãos uns dos outros, (...) cada um caía onde a sorte o levava».

    Capturada tão importante presa, provavelmente a mercadores árabes procedentes do sul do Saara, por uma esquadra de «seis caravelas bem armadas», capitaneadas por homens experientes, da confiança do Infante D. Henrique, entre os quais Gil Eanes e Lançarote da Ilha, este acontecimento marca, sem dúvida, o início do tráfico marítimo português de escravos africanos, sobrepondo-se ao tráfico terrestre das caravanas transarianas dos mercadores árabes, até aí detentores únicos de tal "comércio".

    Desta forma, primeiro a partir de Lagos, depois de Lisboa, após a instituição da Casa da Mina, estabelece-se um "comércio" que vai, progressivamente, distribuindo a "mercadoria" um pouco por todo o país, que só terminará em 1761, por lei do marquês de Pombal, que eliminou a escravatura em Portugal, mantendo-se, contudo nas colónias, só, oficialmente, extinta em 1878.

    Alfena não foi exceção, por certo já antes existiam, porém, as primeiras referências documentadas, atestando a existência de escravos em território alfenense, remontam aos primeiros anos do Séc. XVI, mais precisamente a 1603.

    O Padre Domingos Gonçalves, reitor da Igreja da S. Vicente de Alfena, tomou a devida nota no Livro dos Baptismos, assinando por baixo:

    «Bárbara, fª de Violante, escrava de Simão Vaz, do lugar de Alfena, [N.R.: atual lugar da Rua] nasceu a vinte e nove de Agosto de seis centos e três e foi batizada pelo Padre Melchior Moreira, foi padrinho Antº Mendes e madrinha Maria Miz (Martins), da Ferraria».

    Curiosamente, vinte e oito anos depois, no mesmo dia e mês, desta vez o Padre Manuel Araújo, agora Reitor da Igreja de Alfena, assenta no mesmo livro :

    «Em os 29 dias do mês de Auguosto de 631, baptizei a Luíza, fª de Luzia, escrava de Baltazar Barbosa, morador em a cidade do Porto, agora estante nesta frgª de Alfena, foram padrinhos Lourenço de Matos, da casa do mesmo Sr e Cª Martins, criada da mesma casa».

    Já em inícios do Séc. XVIII, em 1714 e 1716, registamos os batizados de Marcelina e Clemência, filhas de um casal de escravos pertença do capitão de Ordenanças André da Rocha e Sousa, familiar do Santo Ofício, mestre ourives de ouro, com estabelecimento na rua da Fonte Taurina, na Ribeira do Porto e residente na sua Quinta das Corgas ou das Telheiras.

    Curiosamente, contrariando a regra em que escravos apadrinham filhos de escravos, a escrava Marcelina tem como  padrinhos personalidades das relações dos donos; mais, no caso da escrava Clemência os padrinhos são o cunhado Alexandre Sousa e a filha mais velha do capitão, D. Teresa, o que indicia um relacionamento de alguma afetividade (?) entre senhores e respetivos escravos.

    «Marcelina filha de Simão e de Mariana sua mulher, escravos do capitam André da Rocha e Sousa, nasceu em os trinta e hu dias do mês de Novembro do anno de mil setecentos e quatorze e foi baptizada em o primeiro dia do mês de Dezembro, foram padrinhos Manuel Francisco e Maria de Paiva (...)».

    «Clemência filha de Simão Correia e de sua mulher Mariana de Sousa, escravos do capitam mor André da Rocha e Sousa do lugar do (?)  desta freguesia nasceo em os vinte e coatro dias do mês de Novembro de mil sete centos e dezasseis e foi baptizada em os vinte e oito dias do dito mês, por mim o Padre Joseph Martins o Párocho encomendado da dita Igreja e foram padrinhos Alexandre de Sousa, de Sylva Escura e Dona Tereza, solteira, filha do capitam André da Rocha e Sousa e foram testemunhas Francisco da Silva e (...)».

    No caso do capitão António de Paiva Porto, genro e sucessor do capitão Vicente Ferreira Alfena, de Cabeda, também possuidor de um casal de escravos, por volta de 1750, Francisco Ferreira e Antónia de Jesus, a regra mantém-se, os padrinhos dos filhos são os escravos do vizinho Manuel Bento, também de Cabeda, de Manuel da Silva Martins (Barrela) da Rua, de Manuel Moreira da Cunha, ou de Luzia Sousa (Marques), ambos de Transleça.

    O mesmo aconteceu no caso que segue, em  que não se menciona o pai da criança:

    «Estevam filho natural de Mariana escrava de Luzia de Sousa viuva do lugar de Translessa desta freguesia de S. Vicente de Alfena, nasceo aos vinte e nove dias do mês de Agosto do anno de mile setecentos e sessenta e sinco annos, e foi baptizado no mesmo dia do dito mês e anno, foram padrinhos Joam escravo de D. Maria Angélica, viuva do lugar da Rua e Tereza escrava de Manuel da Silva Martins do dito lugar da Rua, todos desta freguesia».

    Como se pode concluir, pelos casos aqui apresentados, a posse de escravos só era acessível a um reduzido número de alfenenses, em geral, os magnatas da época, oficiais de Ordenanças e/ou proprietários das casas agrícolas mais abastadas. 

    No primeiro caso os capitães de Ordenanças André da Rocha e Sousa, da Quinta das Telheiras, Vicente Ferreira Alfena e genro António de Paiva Porto, de Cabeda e Gaspar Pacheco de Melo, também da Quinta das Telheiras.

    No segundo caso, Pedro Marques Ribeiro, do Ribeiro, António Moreira da Cunha e Luzia Sousa (Marques), de Transleça, Simão Vaz, Manuel da Silva Martins (Barrela) e D. Maria Angélica, da Rua e Manuel Bento, de Cabeda.

    Portugal continental era uma pequena gota no oceano do rendoso negócio do tráfico esclavagista, através do Atlântico.

    Inicialmente monopólio da coroa, depois arrendado a mercadores, em geral cristãos-novos, veio a atingir números absolutamente impressionantes.

    Da costa ocidental de África foram desembarcados nos vários portos do Brasil, especialmente na Baía, Recife e Rio de Janeiro, no período compreendido entre 1550 e 1850, mais de 5 500 000 "peças", assim se designavam os homens, mulheres e crianças escravizados, não contando com a mortalidade a bordo durante a travessia do Atlântico, que rondava os 20%.

    Manuel Caldeira, Manuel Baptista Peres, natural de Ançã, distrito de Coimbra, este queimado vivo em auto de fé, na Plaza Mayor de Lima, no Peru, sentenciado por práticas judaizantes e conspiração a favor dos holandeses, Gaspar Álvares "o menino-diabo", António Fernandes de Elvas, o próprio Marquês de Pombal e seus sócios, enquanto acionistas da Companhia do Grão-Pará e Maranhão, com o monopólio, por vinte anos, do fornecimento de escravos às capitanias do Pará e Maranhão, Francisco Félix de Sousa, instalado em Ajudá (possessão portuguesa até aos anos 60 do século passado), no Daomé (atual Benim), com numerosa descendência que ainda hoje o venera, a lendária D. Ana Joaquina dos Santos e Silva, a partir do seu palácio na baixa de Luanda, João Francisco de Azevedo Lisboa o "Azevedinho", o madeirense Arsénio de Carpo, Ângelo Francisco Carneiro Lisboa, agraciado por D. Maria II com o título de conde de Loures, cujo palácio, ao Chiado, é hoje a sede do Grémio Literário, Joaquim Ferreira dos Santos, o filantropo conde de Ferreira, os irmãos Pinto da Fonseca, fundadores do Banco Fonsecas, Santos e Viana, depois Fonsecas e Burnay, hoje integrado num banco de fundação recente, são algumas das personalidades cuja fortuna se deve maioritariamente ao tráfico esclavagista.

    Recordamos que há alguns anos, Jacinto Soares que foi diretor deste Jornal, nele escreveu por diversas vezes sobre uma comunidade marginal completamente segregada, vivendo em amontoados de barracas, situadas em locais ermos, de fronteira, cujas zaragatas eram quase permanentes.

    De tal modo, que nos Bombeiros de Ermesinde havia uma brigada, cremos que informal, que os próprios designavam por "Os Linhaças", em alusão aos emplastros então utilizados para lhes tratar as equimoses, já que... transporte para o Hospital de Santo António só em casos extremos.

    Gente de pele e cabelos escuros, descalços, andrajosos, alguns dados à mendicidade ou a trabalhos precários, esporádicos, outros dedicados à venda de pinhas aos citadinos, como combustível doméstico, cuja recolha, quase sempre à revelia dos proprietários dos pinhais, efetuavam com extrema perícia e agilidade, trepando até às copas de altos pinheiros com o auxílio de uma corda - a peia - que unia ambos os pés, abraçando o tronco da árvore.

    Demolidas as barracas e alojados em bairros sociais construídos nos anos setenta do século passado, percorrem o já longo caminho no sentido da total e completa integração social.

    Seriam estes os descendentes dos escravos libertos, alguns, poucos, por vontade dos donos expressa nos seus testamentos, a grande maioria por força das leis da Abolição?

    É nossa convicção que sim.

    Por: Arnaldo Mamede - Al Henna

     

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