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    Arquivo: Edição de 15-04-2014

    SECÇÃO: Crónicas


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    Quanto vale um nome?

    O largo d’à Bica era o fórum da localidade, ao lado da igreja e da antiga casa paroquial, depois e durante muitos anos, escola primária de janelas voltadas para o largo. Ali se cruzavam todos os caminhos que traziam homens, mulheres e crianças dos vários bairros, além de visitantes chegados da cidade a pretextos vários. Os homens da aldeia passavam em direção ao local de trabalho, as mulheres vinham encher os cântaros e pôr em dia as novidades e os mexericos de ocasião, as crianças brincavam, pin(t)chavam (1) amoras mal estas negrejavam por entre as folhas da amoreira de cima e enchiam de gritos e risos a tranquilidade do lugar. Nas tardes de domingo, homens que já não tinham apetência nem desembaraço para os jogos do fito (2), dos paus (3), do ferro (4) e da pedra (5), sentavam-se nas lajes do largo e conversavam acerca do tempo e das colheitas, os mais idosos queixavam-se dos respetivos males e relembravam tempos idos, pessoas e acontecimentos, a juventude inquieta cirandava alegremente entre o largo e o espaço destinado aos jogos.

    Via-os passar quando ali me encontrava, em tempo de ócio ou aguardando que a cântara se enchesse, em obediência à ordem da minha mãe, numa época em que ainda não havia, nas habitações, água canalizada. Eram irmãos mas nunca vinham juntos, embora seguissem na mesma direção. Agora um, daqui a nada outro, cada qual munido de uma sacha, de umas ganchas ou de outro utensílio agrícola, que não é próprio de trabalhador rural andar de “de mãos a abanar”, desciam o caminho da Requeixada, davam as boas horas (6) a quem encontravam ao passar e rumavam ao seu destino. Não havia memória de os terem visto dirigir a palavra um ao outro e constava que, à mesa, se qualquer deles precisava de cortar fatia do pão, pôr pingo de azeite nas batatas cozidas ou servir-se da garrafa do vinho que estivessem ao alcance do irmão, pedia ajuda à cunhada viúva ou à sobrinha que já estavam habituadas e achavam aquilo natural. Iam para onde determinasse o sobrinho António d’ó Santo que, após a morte do pai, era, por direito consuetudinário, o chefe da família.

    Lembro-me deles já velhotes, solteiros, colaborando nos trabalhos segundo as possibilidades de cada qual ainda que nenhum tivesse uma área em que fosse mais expedito. O povo parecia não dar muita importância à falta de diálogo dos irmãos, penso que ninguém sabia ao certo se qualquer desaguisado os tinha separado algures no tempo ou se nada mais era do que uma questão de feitios. Num ímpeto de romancista, poderia introduzir, neste ponto, uma jovem que ambos tivessem requestado e cuja inclinação por um ou por outro e o óbvio ciúme recíproco lhes tivessem aquecido os ânimos conduzindo a um corte de relações, mas parecia de todo inverosímil que consequências mais graves não tivessem daí resultado. Em alternativa, talvez a protagonista da mútua devoção houvesse falecido, qual “dama das camélias” configurada ao tempo e ao lugar, e cada qual guardasse dela egoística e duradoura lembrança, subsistindo entre os dois homens um surdo rancor que a vida persistiu em manter. Em pequenas localidades como esta, não escaparia ao conhecimento e consolidação na memória coletiva de uma história com semelhante perfil dramático. A única explicação plausível era o feitio especial que os distinguia dos demais.

    Se hoje vivesse, o tio João Simão talvez mudasse de nome, sonho que parece ter alimentado e, inúmeras vezes, referia:

    - Porque me puseram João? Se me pusessem Diogo, outro galo me cantaria.

    Talvez sim, talvez não, a verdade é que João não era nome prestigiado na aldeia. “Os Joões são todos tontos” era expressão corrente, que ninguém sabia definir, porque os seus comportamentos eram semelhantes aos de toda a gente e aí tínhamos como exemplo esses dois irmãos de nomes diferentes – um João, outro Manuel – mas parecidos nas atitudes. No entanto, o João Simão que, no registo, era Pires como os irmãos, preferia ser Diogo vá-se lá saber por que cargas d’água, uma vez que este nome não era usual na aldeia ou nas aldeias próximas onde predominavam os Manuéis, os Josés, os Antónios, os Franciscos e os Joões. Enquanto o irmão falava apenas o indispensável, por sofrer de um problema neurológico que lhe dificultava a fluência, saindo as palavras como que marteladas, inclusive nas boas horas que mais pareciam pancada em bombo invisível, o tio João usava a linguagem sem dificuldades de maior mas ambos tinham comportamentos semelhantes aos das restantes pessoas da comunidade. No entanto, ele próprio alinhava com os demais no preconceito, repudiando o nome que os pais lhe deram. Em consequência de tal convicção, se, até aí, havia poucos homens com esse nome, contavam-se pelos dedos das mãos e ainda sobravam dedos como diz a expressão popular, nas gerações seguintes quase deixou de constar em assentos batismais e civis. O povo, que dizemos sábio, tem destas coisas, admissíveis em crianças mas não muito justificáveis em gente crescida.

    Nos dias que vivemos, talvez o tio João Pires, digo João Simão, tivesse aderido à febre do empreendedorismo. As giestas, que abundam à beira dos caminhos da aldeia e que, na primavera, emprestam tanta beleza com suas flores amarelas, em contraste com o verde que vai despontando em torno mais os brancos e os vermelhos de primaveras, papoilas e de outras flores do campo num embriagante festival de cor, serviam, tradicionalmente, para varrer as casas e respetivos acessos. A determinada altura, o tio João Simão teve a lembrança de confecionar vassouras mais bonitas e mais fáceis de usar para oferecer a pessoas amigas. Decepava uma quantidade de giestas bem compostas, aparava-as com esmero e usava vime (7) para as apertar na extremidade inferior. Chamou-lhes vassouros para os distinguir de quaisquer outros objetos que fossem utilizados nas mesmas funções. Nada pedia em troca mas aceitava uns tostões para adquirir a onça de tabaco e respetiva mortalha que produziam a muralha de fumo atrás da qual procurava ocultar o limitado sentido da sua vida. Mas o que lhe dava maior satisfação era constatar o agrado que lia nos olhos das pessoas agraciadas:

    - Ó senhora Marquinhas, trago-lhe aqui um vassouro. Desculpe, é só um agradinho. (8)

    - Que bonito, senhor João! – dizia a senhora, apreciando a obra de arte. Obrigada pela lembrança.

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    Ia buscar uns trocados e metia-lhos na mão e o tio João Simão, “contente como um cuco”, regressava à rotina diária.

    A ideia de uma possível empresa de fabricação e comercialização de vassouros não é mais que piada tendo em vista a febre de criar um negócio tão em moda na atualidade. Nem o tio João Simão tinha capacidades para imaginar e pôr em prática tal empreendimento nem a aldeia é o que foi no tempo em que viveu. A terra despovoou-se e os moradores atuais preferem os artigos que encontram facilmente nos supermercados da cidade a que acedem nos autocarros de transporte coletivo que ali vão duas ou três vezes por dia.

    (1) Pin(t)chavam – deitavam abaixo, tombavam.

    (2) Fito – jogo a que, noutros lugares, chamam malha, muito simples, em que há um pino em cada extremidade e cada jogador usa uma pedra ou malha de ferro para atirar visando derrubar o pino ou deixar a pedra mais perto do pino do que o adversário. Pode ser jogado a dois, a quatro ou a seis, individualmente ou em equipa.

    (3) Paus – jogo característico da terra fria transmontana em que, sobre uma pedra lisa e pouco elevada, se colocam nove paus numa determinada ordem. Joga-se com bolas de madeira de forma elíptica seccionadas nas pontas, que se atiram sobre os paus, apoiando um dos pés em pedras (malhões) colocadas a distância igual de um lado e do outro da pedra central, tentando derrubar os paus e fazendo-os ultrapassar uma raia feita alguns metros para lá de cada malhão em terreno ligeiramente mais alto dum lado do que do outro. De baixo para cima, o atirador tem que fazer a bola ultrapassar a raia. Se não o conseguir, perde o jogo. Cada pau que ultrapasse as raias vale dez pontos e cada pau tombado mas não passado além da raia vale um ponto. Um jogo vale 40 pontos.

    (4) Ferro – ferramenta em ferro rebatida nas pontas que é utilizada para levantar objetos pesados e para perfurar a terra. Pode ser utilizado para atirar à distância, ganhando quem o atirar mais longe.

    (5) Pedra – uma pedra de certa dimensão que se tenta lançar o mais longe possível.

    (6) Dar as boas horas – desejar bom dia ou boa tarde consoante a hora a que for pronunciada.

    (7) Vime – ramo ou vara flexível do vimeiro (família das salicácias) usada para atar molhos, vinhas ou quaisquer objetos, além de trabalhos de artesanato como cestas.

    (8) Agradinho – diminutivo afetivo de agrado, presentinho, atençãozinha.

    Por: Nuno Afonso

     

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