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    Arquivo: Edição de 15-04-2014

    SECÇÃO: Crónicas


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    Deixar sozinha a solidão!

    O tema solidão inquietava-me, andava a ouvi-lo muitas vezes, sempre associado à terceira idade que sabemos está refém da solidão. De forma propositada, utilizo o termo “refém” tendo em conta que o aplico às pessoas que já não têm condições de saúde, de mobilidade e até financeiras para se moverem para lado algum. No final da linha estão mesmo “reféns” da decisão da vida, enquanto entender mantê-los vivos. Remetidos à solidão, o tempo terá a impressão de ter muito mais que 24 horas, que passam sobre outras 24 e mais outras 24, num ciclo que só a vida se encarregará de interromper.

    Mais pesado este tempo porque faremos o “balanço” e, como “esse tempo é cheio de tempo”, recua-se à meninice, juventude e idade adulta. Palmilham-se lembranças passo a passo, agora numa estrada que é de “sentido único” e só nos será permitido parar quando a vida nos acender o “sinal vermelho”. Não tinha compreendido bem este processo mas, quando pisei solo académico ensinaram-me isso e… muito mais. Serei sempre grata a quem sabe e gosta de ensinar, porque sentados nas salas de aula coisas há que aprendemos e que nos mudam a perspetiva da vida e sobre a vida – de tal forma que nos fazem encontrar… uma vida que aprendemos a amar porque também aprendemos como fazer a travessia.

    Não por negativismo mas tão somente por uma questão de bom senso eu já estou atenta às “luzes do meu caminho”, verdes, algumas vezes amarelas e algum dia terá que haver a vermelha, uma das certezas que trazemos quando nascemos. Continuo a querer aprender com os outros do tanto que não sei e isso leva-me à perceção de que se está a seguir uma tendência quase instintiva de nos focarmos na solidão dos idosos – preocupante!, e eu tenho consciência disso mas, por exemplo, não me tinha dado conta de uma outra solidão de que pouco ou nada se fala: a solidão de que estão a padecer as gerações mais novas. Chamo-lhe uma “solidão-só”, por ser aquela de que ninguém se dá conta, ainda mais porque é pouco valorizada e até a própria pessoa que “padece dessa maleita” nem se aperceberá disso.

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    Cada vez encontro mais gente nova só, numa solidão tal que assusta. Seres humanos que se esvaziam – o que é semelhante a um poço que vai secando lentamente até não restar nada. Silenciosa esta maleita, desentendida por quem acha que “não lhe faltando nada, não há motivos para isso”. Remetida para um canto por quem acha que isso é um sinónimo de fraqueza e não gosta de lidar com “gente fraca”. Pais que entram em desespero, agarrando tudo o que lhes é possível para assegurar o mínimo dos mínimos para os seus “rebentos”, que por sua vez têm que ficar cada vez mais “sós”, vítimas de horários intermináveis de trabalho. Pessoas que têm que ficar para trás a cuidar de quem fica mais fragilizado – entregam tudo de si, sem se aperceberem que depois, eles mesmos, ficam entregues a uma vida cheia de nada, pois em tempos de hoje, a vida “devora-nos” e ninguém está a ter tempo para ninguém.

    Certo é que esta solidão começa a tomar proporções gigantescas dentro de cada um. Tenho-me deparado com situações que já ultrapassaram o “tanto moeu” porque já “matou” as pessoas (e muitas) que já “se entregaram à sua sorte” e desistiram de si mesmas, ainda mais agora nem sequer dispõem de meios para procurar ajuda. A vida parece que cada vez mais vai multiplicando os “coveiros”, aqueles que nem sonham nem deixam os outros ter a capacidade de sonhar, se calhar até como forma de banirem a solidão. Ao fazer-se isso, até de forma inadvertida, nem sequer daremos conta que estamos a remeter os outros para um mundo que começa a nublar lentamente até ficar uma bruma cerrada que impede de enxergar caminhos e onde, pelo tardio, já nenhuma “medicina” fará efeito. Um dia ouvi – “eu sei por aquilo que ela está a passar”. Não, não sabemos. Será esse o nosso grande erro – medir pelo nosso barómetro. Termos perdido a capacidade de olhar para pessoas e onde só passamos a ver “coisas”, que só serão úteis se forem de alguma utilidade.

    Há pouco tempo queria aprender mais sobre aquilo que não sei. Participava num projeto de partilha de saberes, onde um punhado de gente que passava pelo flagelo do desemprego (agora um dos principais responsáveis pelo despoletar do desânimo e da descrença que lentamente encerra as pessoas no vazio) está a ser apoiada por uma equipa de técnicos do Pólo de Formação do Centro Social de Ermesinde. Ajudam-nos a transformar as fraquezas em forças e as ameaças em oportunidades: tornaram-se “artesãos” dos seus próprios saberes. A mim tocou-me sentar ao lado de uma pessoa ainda na fase da “meia-idade”, que estava em processo de transição de luto. Naquele momento sentia-lhe um abatimento que me contagiou, “desassossegando-me”. Percebi que a “equipa” estava atenta – é que a adversidade fê-los juntar e unir todos no mesmo barco.

    Tinha-lhes sentido isso quando partilhei com elas um espaço onde davam os primeiros passos na implementação do tal projeto da “venda dos seus saberes”. Fã da visão sistémica, poucos meses se tinham passado e foi-me permitido assistir a um novo avanço – trabalhavam na ideia da constituição de uma “cooperativa”. Surpreendente, como é a vida, naquela reunião chegava um sinal de respeito por parte de quem também estava no mesmo barco e abriu portas a este projeto, importando o seu conceito. Na tarde de uma quinta-feira, a vida de um grupo representativo desta “gente de muitos saberes” enchia-se de sonhos e esperanças, quanto mais não seja pelo reconhecimento, pelo voto de confiança e pela oportunidade de arriscarem. Com tudo isto e já no final deste dia, uma das pessoas precisava de etirar-se a tempo de ir ouvir uma “missa por alma de alguém muito querido”. Até lá não arredou o pé de junto da equipa que organizava o espaço que lhes estava destinado e isto porque no dia seguinte ela ia precisar de deixar para trás a solidão e a tristeza que lhe tinha sentido dias atrás, porque as suas forças tinham que ser canalizadas para a sua coragem e para o colorido dos “saberes” que lhe saem do trabalho das mãos de artesã.

    Ela e outros tantos como ela, que estão a habituar-se a conviver uns com os outros, precisavam ainda de recorrer à capacidade de rir, quando muitas vezes lhes apetece chorar e desistir quando o único caminho será continuar. O abraço de despedida que recebi quando precisei de deixá-las a trabalhar para os seus sonhos, encheu-me a alma mas acima de tudo “sossegou” o meu “desassossego”. Graças ao trabalho de toda a equipa que está envolvida nesta “arrojada aventura”, fui percebendo que além da oportunidade que cada um tinha de encontrar saberes que desconheciam, este tipo de projetos são um potenciador de coragem para se recomeçar. Como requerem a colaboração de todos, todos são precisos, todos cuidam uns dos outros, e isso dá a motivação suficiente para se sair fora de portas e desta forma deixar sozinha a solidão.

    Por: Glória Leitão

     

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