A cultura desmistificada
O Zora pastoreava gados alheios e sonhos próprios condicionados por estreitos horizontes. Foi assim que o conheci, ele já adulto de capa e bordão, habitualmente sentado num qualquer banco de taberna da aldeia a escorropichar copos de vinho e a jogar chincalhão, manancial de histórias que a vida lhe fora ensinando no contacto com gente de muitos sítios e, sobretudo, com os ensinamentos que a Mãe Natureza prodigaliza a quem souber entendê-la e respeitá-la.
“Quem terras não lavra e onde cabras não há de algum lado lhe virá” assim torci o provérbio ancestral para o tornar adequado ao caso do Zora porque a versão autêntica aponta os que, não tendo bens ao luar (1), apresentam sinais exteriores de abastança. Nascido em família muito pobre que lutava para subsistir, ainda que tivesse uma ou duas leiras para ser(em) lavrada(s) e dela(s) obter o curto pão de cada dia e, quanto a cabras, o plural é exagero, uma seria pouco para dar leite que bondasse (2) para alimentar frugalmente quatro bocas, o rapaz outro recurso não tinha que não fosse tomar conta do que a outros pertencia. Ora, só lavradores de posses estavam em condições de adquirir e manter rebanho de ovelhas/cabras, arrostar com soldo raquítico e oferecer palheiro ou carreta para dormir, casqueiro e um cibo de presunto ou chouriça do fumeiro a quem o apascentasse. Muito erra quem pense que é fácil ser pastor: requer-se, além de vigilância apertada, amor aos animais e mão sábia para os meter na ordem com uma lapada (3) sob medida, sem falar no sacrifício de viver isolado da família e dos amigos sujeito às intempéries e às constantes ameaças de alcateias famintas, protegido apenas por dois ou três cães de guarda. Não por acaso, Jesus se intitulou “Bom Pastor” e a Bíblia contém inúmeras referências ao tema, desde os Patriarcas do Antigo Testamento que conduziam seus gados pelos serros, passando pela referência ao cordeiro que, frequentemente, era imolado em homenagem a Deus, louvado pela Sua bondade infinda ou como oferenda por graças recebidas, até à vinda do Redentor que tem como primeiros visitantes os pastores a quem o Anjo anuncia o Seu nascimento e correm a oferecer-Lhe presentes não especificados, com certeza produtos derivados do leite das suas ovelhas, está presente em parábolas como a do pastor que perde uma ovelha entre cem, deixa as noventa e nove restantes no deserto e vai à procura da ovelha tresmalhada até a encontrar, pedindo a todos que se regozijem com ele por esse bom êxito até à assunção pessoal da metáfora do “Cordeiro de Deus que tira os pecados do mundo”. Tal como na “terra onde corre o leite e o mel” a abundância não passava de ludíbrio para o espírito, também para lá das serranias maronesas o chão era ingrato na satisfação das necessidades básicas dos habitantes.
O Zora não tinha instrução, frequentara a escola até à segunda ou terceira classes e, por suposto, fora ajudar a mãe e as irmãs que esgadanhavam um quintalzito para “o caldo nosso de cada dia”, uns sucos (4) plantados de batatas, uma dúzia de pés de couve e outros tipos de hortaliça. Além disso, criavam galinhas e coelhos, má criação esta última porque os leporídeos são demasiado atreitos a doenças que em pouco tempo os dizimam, se não existirem instalações bem limpas e arejadas que lhes permitam resistir aos vírus maléficos. Todavia, reduzido que fosse o número de sobreviventes, sempre davam para tornar mais alegre o almoço dum dia nomeado, talvez para um agrado a quem os ajudasse a resolver embaraçoso problema nas Finanças ou no Registo Civil que as pessoas da cidade são muito sensíveis a estes mimos, era até costume dizer-se que preferiam que lhes batessem à porta com os pés, as mãos iriam, obviamente, ocupadas com presentes. Galinhas eram mais fáceis de criar, elas próprias buscavam seu sustento, vagueando por quintais e cortinhas a esgravatar a terra à procura de vermes, debicando folhas de leguminosas a catar insetos e retornando à capoeira, mal a noite se anunciava, para receberem uma mão de centeio, cevada ou milho que a dona lhes reservava para dormirem de papo mais confortado. Os coelhos são “fidalgos”, selectivos, há ervas que rejeitam, outras a que se agarram com sofreguidão, forçoso é conhecê-las bem e abastecê-los com generosidade, sem falar das folhas de algumas árvores só disponíveis em parte do ano.
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O Zora era um garoto travesso e esperto – no Brasil, diriam um moleque levado – que aprendia depressa o que lhe ensinavam e, mais depressa ainda, furtava-se à vigilância da mãe e das irmãs em busca de jarolda (5) e desaparecia em menos de um credo. Quando o Abílio Ferreira e o Manuel Nunes decidiram fazer um estrelóquio (6), o largo d’à Bica tornou-se, para o miúdo, sítio de eleição. Os rapazes mais velhos trabalhavam afanosamente para montar o palco onde as peripécias ocorridas nos últimos tempos, descritas em verso pelos organizadores, tivessem o acolhimento das pessoas do lugar e de aldeias vizinhas que certamente não faltariam a esse espectáculo inusitado. Sobre fortes estacas de carvalho cravadas no chão, tinham assentado barrotes de castanho, o tipo de madeira mais indicado para esse efeito e que deveriam sustentar as tábuas do palco. O Abílio ajustara tábuas e já cravara pregos caibrais de um lado mas para as nivelar do lado contrário, tinha deixado martelo e pregos à distância. Para não ter que voltar atrás e vendo a multidão de miúdos que seguiam o seu trabalho, interpelou o Zora que ocupava a primeira linha de assistentes:
- Ó tu, abonda-me (7) daí o martelo e esses pregos maiores, avia-te (8)!
Não podia ter sido mais a propósito para o Zora satisfazer a sua veia brincalhona. Pegou no martelo mas, em vez de levar os pregos caibrais, meteu a mão ao bolso, encheu-a com cerzetas (9) que trazia misturadas com outras ninharias e depositou-as sobre a tábua, desatando a fugir. O Abílio, que não esperava aquela partida, praguejou tentando alcançar o garoto mas ele já ia longe rindo, rindo…
Os anos passaram mas o Zora conservou o bom humor que em pequeno o distinguia. Junho entrado, as temperaturas subiam e o gado requeria séstia (10). Os pastores abriam as cancelas antes do amanhecer - quando o tempo aquecia o gado dormia ao ar livre, cercado por cancelas de madeira, para estrumar terras de cereal –, permitindo às ovelhas tosar erva “pela fresca” e, cerca do meio-dia, levavam-nas para uma touça (11) onde repousariam até que o calor abrandasse. O descanso do gado permitia aos pastores descer ao povoado para descansar e divertir-se. O Zora não perdia essa oportunidade. Quem o conhecesse, encontrá-lo-ia na taberna do tio Adriano abancado, à frente um baralho de cartas pronto para jogar ao chincalhão com quem aparecesse e um copo de vinho para aclarar a voz e abrir o raciocínio. Quando ganhava, punha ênfase na explicação
- É licultura! É licultura!
Os circunstantes riam-se mas ninguém lhe perguntava o significado de tal neologismo. Se, como dizia o meu saudoso mestre Professor José Augusto Seabra, o texto (literário) admite todas as leituras, estamos autorizados a pensar que o Zora se referia à própria cultura adquirida na prática da sua profissão ou pretenderia dar-nos uma lição de cultura.
(1) “Ter bens ao luar” – possuir terras, casas ou outros bens materiais.
(2) Bondasse – pretérito imperfeito do conjuntivo do verbo bondar = bastar, chegar
(3) Lapada – pedrada.
(4) Sucos – sulcos, regos para plantar batatas.
(5) Jarolda – brincadeira com outros miúdos.
(6) Estrelóquio – espetáculo teatral.
(7) Abonda-me – imperativo do verbo abondar = pegar num objeto e entregá-lo a quem o pediu.
(8) Avia-te – imperativo do verbo aviar-se = andar depressa.
(9) Cerzetas – preguinhos minúsculos, utilizados pelos sapateiros para pregar as solas do calçado.
(10) Séstia – corruptela de sesta (descanso ao princípio da tarde)
(11) Touça – floresta de carvalhos.
Por:
Nuno Afonso
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