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    Arquivo: Edição de 18-06-2013

    SECÇÃO: Crónicas


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    A alma das cidades

    Volta não volta, ouvimos dizer que as cidades têm alma ou, particularizando, que a cidade A ou B “tem alma” ou que “é uma cidade com alma”. Como o vocábulo alma pertence ao domínio da filosofia e daí ao religioso, tal afirmação desperta em cada um de nós um imediato movimento reflexivo, como tudo o que não pertence à realidade tangível segundo os parâmetros que nos são familiares. Onde se encontra a alma de uma cidade? No seu espaço construído, em prédios altos ou simpáticas vivendas rodeadas de jardins floridos e de graciosas árvores? Na configuração da sua área útil, em terreno plano ou em colinas, em ruas estreitas ou largas artérias? No espaço envolvente, na variedade de superfícies líquidas: um rio largo atravessado por pontes de estilos característicos, um grande lago em que deslizam barcos e em cujo espelho se refletem edifícios nobres e árvores exóticas? No tipicismo dos seus habitantes, no conjunto das suas manifestações culturais e sociais, do seu relacionamento comunicacional, no seu vestuário característico, nas suas atividades ocupacionais? Na informação que recebemos através dos nossos sentidos: cores, sons, cheiros que induzem gostos, sensações? Ou na maneira expedita de englobar tudo isto, porventura ainda outras coisas num conceito?

    A palavra alma é, sem dúvida, uma das mais difíceis de definir. “Elemento imaterial do composto humano, origem e motor das suas ações vitais” assim é definida, à luz do conhecimento presente, pela Enciclopédia Verbo Luso-brasileira de Cultura que acresecenta: “Do latim anima que tem a mesma raiz do grego anemos (vento) e psyché (de anapnein = respirar), do sânscrito atman e do alemão armen (respirar) e o mesmo sentido de pneuma (espírito, sopro, respiração), o termo alma indica o princípio da vida e, mais propriamente, das proporções superiores do homem como sentir, pensar e querer/…/ substância espiritual, a alma é também princípio de movimento e de vida.” Em sentido denotativo, diz respeito ao homem em função do qual é considerada, como ser racional que é, logo, responsável pelos seus atos ou omissões, o elemento imaterial de que ele é constituído, o único imperecível em contraste com o corpo cujas células e tecidos, se vão transformando e morrendo desde o nascimento até ao instante que encerra o respetivo ciclo vital. O termo alma, aplicado a um conjunto de países, a um povo, a uma região, a uma cidade, vila ou aldeia, seja qual for o seu tamanho ou especificidade, só pode compreender-se em sentido metafórico, atendendo às características que, presumidamente, os (as) tornam diferentes de outros (as) quaisquer e resistiram às vicissitudes das eras. Ao invés da natureza, o homem caracteriza-se porque, de facto, lhe é atribuído esse sopro vital, essas proporções superiores de sentir, pensar e querer, esse princípio de movimento e de vida que definimos como alma. Alma, no sentido metafórico, seria, então, algo que emana dessa comunidade, a sua respiração, o seu “odor”, a marca diferenciadora relativamente a outras ou mesmo a todas as demais. Diz-se de umas que os seus naturais são honestos e respeitadores da sua palavra, de outras que não são fiáveis até prova em contrário; atribui-se, aos membros de algumas, forte determinação na luta pelos seus objetivos ao invés daqueloutros que são vistos como privados de convicções firmes; os naturais destas são organizados, metódicos, rigorosos; já os das suas vizinhas são descuidados, improvisadores, sempre capazes de um “golpe de asa” em derradeira instância.

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    Quer porque o conceito de alma variou, através dos tempos, desde não ter sido objeto de reflexão, passando a uma ideia algo nebulosa que povos muito antigos lhe foram atribuindo, etapa a etapa mais expressiva, até ao advento das religiões monoteístas em que se tornou a parte essencial do composto humano, quer porque, a partir desse momento, se tornou sagrada tornando-se pedra basilar de todas as teologias, parece-me inapropriado o seu emprego na aceção acima enunciada, preferindo-lhe o termo carácter. Socorro-me, novamente, da Enciclopédia Luso-Brasileira de Cultura para justificar esta opinião. Conquanto se aplique fundamentalmente ao indivíduo, como um “conjunto de fatores que condicionam, desde o início, em cada sujeito, os processos de adaptação ao mundo exterior e a si próprio”, não parecerá desajustado quando se atribui a um povo, seja ele referido como cidade, vila, aldeia ou lugar. Assim, dizer-se que a cidade A ou B tem carácter indica, sem qualquer espécie de impropriedade, “o conjunto de disposições congénitas que formam o esqueleto mental do indivíduo”, neste caso da comunidade, a maneira como, no seu conjunto, se processam as ações e interações. “Na definição desse atributo estão implícitas a realidade, a permanência, a solidez e a invariabilidade do carácter dado que, em cada indivíduo – em cada comunidade – essencialmente, o carácter radica numa unidade congénita e garante, através do tempo, uma unidade estrutural de conduta especificável mas não alterável”.

    Poderá o carácter de uma povo ser identificável com o comum dos cidadãos que o compõem? Naturalmente que não. Cada pessoa tem a própria maneira de ser e de proceder resultante da sua personalidade e dos valores e princípios que adquiriu no processo de socialização desde a mais tenra infância até à idade adulta. Tal processo decorreu no seio da família, nos grupos sociais em que se integrou, na escola e no relacionamento com toda a comunidade. Diferente na sua natureza, também o é na formação caracteriológica. No entanto, o ambiente em que esse carácter foi moldado não deixa de influenciar a sua forma de estar na vida. Parece, pois, adequado que transporte, na convivência com pessoas de outras comunidades, algo que o distingue pela sua proveniência do lugar A, B, C,…

    Por norma, uma pessoa nasce em determinado lugar e ali se desenvolve física e culturalmente. Pode passar por outros lugares e ali permanecer mas presume-se que transporte consigo a formação adquirida onde viveu a infância e a juventude. Até há poucas décadas, a família tradicional desempenhava um papel determinante nessa formação, existia estreita colaboração entre ela, a escola e a sociedade. Chegando à idade adulta o indivíduo refletia não só a carga genética própria mas também a social do meio de que provinha. A cividade (do vocávulo latino civitas) num sentido quase tão amplo, como aquele que o seu derivado cidadão adquiriu no mundo atual – lugar de origem –, ficava, desse modo, inscrita na identidade da pessoa, era a modos que um cartão que o acompanhava para onde quer que fosse. Ser transmontano, alentejano, portuense, lisboeta ou algarvio constituía, por conseguinte, marca importante, ainda que relativa, (há sempre aqueles que fogem ao estereótipo) nos contactos com outras gentes ao longo da sua vida. Nos últimos tempos, as transformações ocorridas na família e na sociedade alteraram significativamente o quadro atrás referido. Continua a ser pronunciada a terra de origem do indivíduo mas de maneira muito diversa quase como um provérbio, uma expressão tradicional e pouco mais.

    Por: Nuno Afonso

     

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