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    Arquivo: Edição de 18-06-2013

    SECÇÃO: Crónicas


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    Cascata e fado na minha rua

    «Aqui fica o meu convite para quem ainda não visitou a cascata de São João do "Quim do Pedro". Uma cascata que teve como autor o meu bisavô Rodrigo do Pedro, e mais tarde seguida pelo seu filho (meu avô), Joaquim do Pedro. Depois de algum tempo sem estar em exposição, os seus filhos Rodrigo e Augusto do Pedro, tiveram a coragem de a expor novamente e com muitas mais novidades» – estávamos assim convidados a visitar a cascata mais conhecida da nossa freguesia, Vermoim. A Casa do Povo abriu-lhes as portas cedendo a esta família o espaço suficiente para alargarem o seu sonho – 15 metros de comprimento, com mais de 300 figuras em movimento, tudo feito de forma artesanal ao longo de meses a fio. Visitar esta cascata leva-nos a recuar no tempo, pois estão lá representadas os jogos tradicionais e as profissões comuns da época: as lavadeiras, os tamanqueiros, o sapateiro, o transporte de vinho do Porto, as pontes que atravessam o Douro, etc., etc.. Tem a procissão, o compasso, a música e dos edifícios do meu tempo emocionou-me ver a minha escola primária, nas “Cavadas”, em tempos em que ainda só era frequentada pelas meninas.

    Dias antes, num final de tarde, eu tinha feito a pé o percurso da minha infância e que tinha começado exatamente pela minha escola. Ao olhar para o recreio dava-me ares de não estar a ser utilizada e tive pena que não ainda não lhe tivessem encontrado utilidade, devolvendo-lhe a missão da aprendizagem. Segui o meu percurso pelo Carvalhal e lá encontrei o pequeno santuário onde se faziam as preces de maio. No regresso e ao passar em ruas com nomes religiosos encontrava casas devolutas, sem a história do meu tempo e dava por mim a pensar que tudo é fugaz e volátil. As histórias das famílias vão ficando escritas em pedras que se vão desmoronando aos poucos e até o edifício dos Correios, em tempos cheios de gente, quando ainda se escreviam muitas cartas, está devoluto e vazio. Num percurso que também me levou a novas zonas residenciais (de gente já não é do meu tempo), entro na minha rua, uma rua de tamanqueiros – se calhar a origem para o seu nome “cavaco”, e passo na casa que me acolheu três dias após o meu nascimento, em tempos que os partos se começavam a fazer nos hospitais. Enquanto descia a rua pensava que também ali a vida passou de forma volátil e a história das pessoas do meu tempo lá estava, escrita em “pedras vazias” em algumas das suas casas mais antigas.

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    De repente, a uma dada altura ouvi cantar o fado. Um acontecimento novo: cantava-se fado na minha rua. Não era a mesma coisa que ouvir os altifalantes, em época de S. João, mas emocionava ouvir cantar, ao vivo, numa rua vazia dos sons das famílias e do movimento do meu registo de memória. Olhei para a casa de onde saíam os sons da música e vi que se tratava de pedras que ganharam vida – uma casa devoluta que se transformou num negócio de família, que a transformou em adega regional batizada como se filho desta rua se tratasse – “cavaquinho”. Afinal, a vida tinha mudado na minha rua que agora, com a Casa do Povo lá instalada, dá também lugar a acontecimentos lúdicos e culturais que lhe geram movimento, como tem sido com os espetáculos musicais, provas de ciclismo, desfiles de carros antigos. Acrescento-lhe agora a cascata, que durante algum tempo fica como minha “vizinha”, junto a uma simpática e alegre cafetaria que tem um dado novo: vende pão, coisa que durante os anos que me conheço era assegurada pela padeira com a canastra à cabeça, dando depois lugar ao padeiro que na sua velhinha “Transit” ainda se mantém ativo e toca na sua passagem diária, a exemplo da peixeira e do merceeiro, que comprou a “praça” ao “azeiteiro” que se fazia transportar de carroça.

    Felizmente que não existe outra “máquina para o tempo” que não seja o controlo da nossa própria memória e tudo o que se vai edificando e sobrevivendo às intempéries da vida. O tempo não precisa de voltar para trás, tal como queria António Mourão na sua canção. Ninguém ia querer dar razão ao Charlie Chaplin quando em 1936 produziu a comédia satírica “Tempos Modernos” – estavam lá todas as “embrulhadas” para onde nos ia levar a evolução e o desenvolvimento que não pode ser parado com o desligar de um interruptor. Agora, tem que se aprender a viver com tão pouco e também há tão pouco onde o ir buscar porque as fontes de riqueza movem-se e deslocam-se no mesmo sentido da mão de obra barata, o mais barata que puder ser. O ecrã do controlo dos trabalhadores que vemos naquele filme, agora é feito com maior preciosismo – a engenharia dos minúsculos “chips”, fabricados de forma reduzida, a mais reduzida possível mas onde caiba o máximo da informação possível. Fomos nós que pedimos tempos modernos, geramos a necessidade do consumo, tornamo-nos insaciáveis e construímos uma “máquina infernal” que nos devora e onde tudo é controlado pela majestosa, única e verdadeira “máquina do tempo”: o relógio que mesmo parado, acerta nas horas duas vezes.

    Não vale a pena chorar sobre o leite derramado ou carpir sobre fraco defunto. Eu quero mesmo o tempo no meu tempo. Quero os sorrisos que criei. Caminhando pelas minhas próprias pernas eu quero sentir o cheiro a maresia quando visito o mar e quero o cheiro a eucalipto quando desço a minha rua. Quero apanhar o autocarro que me leva a um trabalho e a uma vida. No tempo do meu tempo, quero acreditar que vamos conseguir mudar de rumo, que gosto de ver tanta gente que ainda acredita e luta por ideais, gera novos postos de trabalho, aposta na aprendizagem e ensino e tanto mais a que se assiste porque, na minha rua, também existem empresas que se conseguem manter ativas e saudáveis e dá gosto ver o vaivém de quem, em tempos de hoje, ainda tem um trabalho digno. A não acreditar assim, que força havia de nos mover para os festejos dos nossos santos, que são populares, rapioqueiros e de forma mesmo fugaz e ténue nos fazem pensar que o dia de amanhã poderá será melhor, se trabalharmos pelo melhor, se decidirmos pelo melhor? E isso sim, nós podemos trazer do tempo que fica para trás o saber do que não queremos que se repita, o que sabemos que não resultou...

    Por: Glória Leitão

     

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