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    Arquivo: Edição de 28-02-2013

    SECÇÃO: Literatura


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    A VOZ DAS PALAVRAS

    Dois autores, um título

    No inverno / dizes de muito longe que não voltarás aqui.» (1)

    São talvez os versos mais explícitos que José Agostinho Baptista escreveu em “Inverno”, poema que integra a obra “Agora e na Hora da Nossa Morte”. O autor rabiscou este livro de poesia secretamente e revestido de silêncio enquanto assistia à morte do pai. Esta obra, do foro íntimo e corajoso, chega a ser um combate que o poeta estabelece com Deus e uma tentativa vã de recordar a infância. Fala-nos do mais íntimo dos momentos – a morte – e com uma enorme aptidão de acordar a emoção em quem lê. Não é fácil entrar neste tema sem estremecer porque ver a morte do outro é meditar a própria:

    «…

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    aquilo que nos convoca para o silêncio e para / a mão que escreve, sonâmbula e feroz,

    estremecendo.» (2)

    E é precisamente sobre este eterno assunto, melindroso e assombroso, que o autor nos comunica com uma rara sensibilidade poética. Não se pode esconder nada, nem a dor, nem a perda. E com as palavras mais simples, que brotam abundantemente:

    «Em círculo,/ Estão os círios e as candeias,

    Nas aldeias de novembro elas também estão

    Em círculo,/As mães que fecham a escuridão.

    …» (3)

    “Agora e na Hora da Nossa Morte” é igualmente o livro de estreia de Susana Moreira Marques, título pedido de empréstimo do livro de poemas de José Agostinho Baptista. É o desfecho da viagem que Susana Moreira Marques, acompanhada pelo fotógrafo André Cepeda, fez a Trás-os-Montes para seguir um projeto de prestação de cuidados paliativos domiciliários, apoiado pela Fundação Calouste Gulbenkian.

    Na cabeça levava a ideia de uma reportagem e uma pergunta: «O que é que as pessoas pensam no fim da vida, que sabedoria têm?» Andou por aldeias longínquas e esquecidas, visitou casas, falou com «as gentes» e escreveu sobre a morte como nunca se escreveu, tentando apanhar-lhe o tom e adequar-lhe a linguagem, libertando-se de lugares comuns, sem nunca ceder à emoção fácil. Num registo que mistura reportagem, ensaio, entrevista e diário de viagem, "Agora e na Hora da Nossa Morte" leva-nos para o lugar onde Portugal acaba e é esquecido, onde todo um modo de vida está em vias de desaparecer – «Uma ilha, mas em vez de mar, terra.» (4)

    A escrita é pausada, lenta, de quem sabe ouvir em silêncio, com olhos cúmplices e sem as cedências do tempo. João, Maria, Paula, Sara e Elisa são seres humanos reais, com sofrimentos reais. Nada do que vivem e contam é ficção, mas a autora soube aproximar-se delas com a profundidade, a linguagem e o olhar de um romancista. São histórias de pacientes e o impacto avassalador das doenças terminais no espaço da intimidade familiar. A violência da morte próxima, «pairando em círculo como as águias sobre as escarpas do rio.» (5) Por isso, as vozes, os lugares e os objetos fazem eco dentro de nós. E luto.

    Relata as vidas de quem teve a generosidade de abrir a porta na hora mais íntima e traz, de uma maneira pungente, a voz de quem raramente pode falar. Entra no dia a dia familiar, ganha confiança, habitua-se e àquelas pessoas, participa em almoços de domingo, regressa mais tarde para as vindimas, encontra pessoas com pouco tempo de vida, familiares que dormem à cabeceira de camas e ouve com a atenção minuciosa de quem sabe que o desaparecimento futuro já se instalou dentro da casa. Sempre com uma réstia de esperança – «Querem apenas um pouco mais de vida, querem um pouco mais de tempo para acreditar que o corpo vence; todos querem, com uma força desproporcionada, talvez delirante, continuar de olhos abertos.» (6)

    É um livro que perturba, interpela, que magoa porque a realidade é mesmo assim. São histórias exemplares entre as muitas que a autora encontrou e quis representar, porque uma das grandes questões é a de como representar a realidade que ninguém quer ver. É aí, num tempo de fim, num tempo de urgência, que – perante a solidão da velhice, o sofrimento da doença e a nossa mortalidade – começamos a perceber o que é importante. O retrato é-nos dado pela viva voz das figuras retratadas, e num discurso direto (em itálico) tão em bruto que nos esmaga com a sua verdade. Não é preciso ir a Trás-os-Montes, à porta da nossa casa, temos a vida tal como ela é. Portugal está aqui, nestas páginas.

    Brilhante livro de estreia que desafia os limites – não apenas da reportagem mas dos géneros literários. Esse livro é um soco. É um soco de vida.

    Trecho: «Quando soube que não sobreviveria à doença e que não poderia continuar a caminhar no vasto campo em frente de sua casa, o caçador que gostava de flores pediu misericórdia, que o matassem depressa, por favor. Morreu numa cama sem dizer últimas palavras de significado e nesse dia nasceu no quintal um cachorro que nunca viria a ser cão de caça; foi então levado para um caixão e velado no centro da sua sala, os pássaros empalhados com as asas abertas olhando-o de cima do armário. Na varanda, com vista para a terra que tinha sido a sua maior alegria e que supunha ir gozar em pleno na velhice, tinha o vaso preferido que deu ainda flor na Primavera após a sua morte.» (7)

    (1) José Agostinho Baptista, in “Agora e na hora da nossa morte”. Lisboa: Assírio & Alvim, 1998.

    (2) Ibidem.

    (3) Ibidem.

    (4) Susana Moreira Marques, in “Agora e na Hora da Nossa Morte”, Tinta da China, 2012.

    (5) Ibidem.

    (6) Ibidem.

    (7) Ibidem.

    Por: Ricardo Soares

     

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