E esse aí, essa aí (?), quem sou? – notas acerca de “A Bailarina vai às Compras”
De 23 a 27 de novembro, antecedendo o MIT, Júnior Sampaio esteve no Centro Cultural de Campo a apresentar ao público a sua peça (a meias com Quico Cadaval) “A Bailarina Vai às Compras”. Esta produção, em que a Barraca também se envolveu, por exemplo através da coordenação artística de Maria do Céu Guerra e da encenação de Rita Lello, conta a história do quotidiano de um transexual, a partir dos contactos telefónicos que ele vai estabelecendo quando faz compras no supermercado.
|
Fotos MANUEL VALDREZ |
Primeiro sinal: «Sou poupadinho», no masculino, diz a bailarina. E assim se vai percebendo que este ser humano, que nasceu no corpo de uma mulher mas que quis ser – era – homem, apesar de não querer trocar a sua vagina por um pénis, é uma pessoa como outras tantas, que percorre os corredores do supermercado, e faz contas à vida.
Na sua rede de relações, aparecem visíveis a ternura pela mãe, a paixão pelo(a) amado(a), que se exprime da forma pouco convencional que só os amantes escolhem para se nomear, como só eles se podem tratar, num código que não é de mais ninguém.
A peça obedece aos requerimentos mais estritos da portabilidade (Rita Lello dizia-nos a brincar, mas muito a sério, que toda a cenografia cabia no carro do Júnior), e é suposto que a sua vocação andarilha meta agora os pés ao caminho e vá por aí fora... a mostrar Teatro.
Na meia dúzia de prateleiras os figurinos de Rita Bronze (ou o texto de Júnior e Quico Cadaval) colocaram meias e cuecas, leite, bananas, queijo, água, ovos, milho, arroz, maçãs, açúcar e etc..
Há de tudo!
Mas haverá de tudo?
Tal como, a muitos, parecerá de menos este ser humano frágil e forte, complexo, também os que consomem não podem perguntar--se sobre o próprio consumo, sobre o mais essencial que falta à vida?
E o texto de Júnior Sampaio e Quico Cadaval vai avançando a sua lista de compras, aquela que ninguém deve esquecer de fazer de antemão antes de sair para comprar qualquer coisa menos necessária: tantos gramas de Chagall, Degas, Fassbinder, Villalobos, Botero, Gaudi, Kazuo Ono, Isadora Duncan...
Tal como a vida daquela personagem se transformou, assim «há de existir uma forma de transformar a vida», –citamos “A Bailarina Vai às Compras”, de Júnior Sampaio e Quico Cadaval.
Na peça, em que o cenário frugal exprime todo um universo, a cenografia faz-se também de véus e de chuva (chuva de luz, chuva de arroz, chuva de farinha).
Por fim, duas anotações pessoais: a dada altura, viradas que estão mais uma vez as prateleiras, só um ou outro dos bens expostos se encontram com a face para o público, apenas restando o lado mudo das caixas. E porque não todos eles assim?
Quase no final, o baton dos lábios do ator cede ao calor, e parece adivinhar um vómito de sangue. Que não vem. E, pela natureza positiva da peça, não deve vir, acho.
Que a Bailarina não se esqueça de, ao menos, comprar uns bons sapatos!
Por:
LC
|