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    Arquivo: Edição de 15-10-2011

    SECÇÃO: Crónicas


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    Ser carismático

    Há significantes que surgiram no léxico da língua para revelar a nossa perplexidade quanto a situações que não podemos definir, numa tentativa de as colocar ao alcance do nosso entendimento. Certas pessoas têm algo que as torna naturalmente superiores, sem que possamos explicar esse magnetismo. Talvez não correspondam aos parâmetros comummente aceites para avaliar a beleza individual, a desenvoltura e o à-vontade nas relações sociais, quiçá uma simpatia enleante e persuasiva, possivelmente o conjunto de todos esses predicados e ainda outros. Dizemos então que essas pessoas têm carisma não apenas pelas qualidades que efetivamente possuem mas pelo ascendente que revelam em relação às outras. Por diferentes palavras: não sabemos definir a causa mas identificamo--la pelos efeitos que produz.

    O vocábulo chegou até nós desde o grego antigo chárisma e significava graça, favor, benefício, por via do latim em que passou a ter o sentido de presente, dom, graça divina na aceção conferida pela religião cristã. Este é um dos muitos milhares de vocábulos que fizeram idêntico percurso, nomeadamente nos domínios religioso e científico, aqui, muito especificamente, reconhecíveis no campo da Medicina. Não serão estes o tempo e o lugar mais adequados para os referir mas citarei, de passagem, no domínio religioso eucaristia, epístola, evangelho, liturgia, cálice, hissope, pároco, paróquia, presbítero, diácono e, na ciência de Hipócrates, quase todas as denominações de especialidades médicas, terminologia clínica e receituário.

    Carisma será então um dom especial, como que um íman que atrai indivíduos ou grupos humanos e que permite àquele a quem é reconhecido tornar-se naturalmente líder, impor as suas ideias e conduzir os demais sem que estes sintam que ficaram diminuídos e outorgando-lhes convicção e autoridade. Um jovem professor universitário quase desconhecido que chega ao congresso do seu partido e é por este eleito presidente; um até então anónimo cidadão que, entre iguais, consegue expor com clareza e assertividade os propósitos do grupo; alguém que, sem tergiversações, impõe as suas teses embora, de início, elas desagradem ou suscitem dúvidas a uns quantos, é um ser carismático. Vemo--lo surgir como que do nada e, de um momento para o outro, alcançar indiscutível autoridade.

    O senhor padre Telmo foi, em largo período da sua vida, um desses seres marcantes em qualquer das atividades que lhe foram atribuídas: pároco zeloso e convincente; capelão de regimento militar aglutinador e eficiente na orientação religiosa e humana dos seus membros; professor capacíssimo e persuasivo; bom de papo 1 com apurado sentido de humor e vastas áreas de interesse desde a elevação teológica ao popular terreno desportivo, passando pelos domínios linguístico e literário, pelo teatro, pela música, pela informação d’aquém e d’além fronteiras. A ele, com grande propriedade, se poderia aplicar a famosa expressão do comediógrafo latino Terêncio Africano: homo sum; humani nihil a me alienum puto (sou homem: considero que nada do que é humano me é estranho). Durante as suas homilias, podia ouvir-se o zumbido das moscas que voltejavam tal a atenção que os fiéis prestavam às suas considerações; entre os soldados desenvolveu ações pastorais de enorme sucesso como a peregrinação ao Santuário de N.ª S.ª das Neves da Serra – situado no alto do cabeço da serra de Nogueira onde se realiza, anualmente, a nove de setembro, uma festa (romaria) antecedida de novena preparatória – com ampla participação de praças e oficiais nas práticas religiosas que incluíam eloquente sermão por renomado pregador convidado, além de uma assiduidade aos habituais atos de culto de que já não havia memória; como professor no Seminário e, em simultâneo, prefeito, dava a conhecer factos transmitidos pela rádio, a que os alunos não tinham acesso, e informações acerca de autores e suas obras literárias, durante os intervalos falava, oportunamente, de grandes músicos e respetivas composições, tecia comentários acerca dos jogos de futebol de maior projeção e das competições internacionais de hóquei em patins nos tempos heróicos de Raio, Jesus Correia e Correia dos Santos, sabia como divertir os pupilos com naturalidade e a-propósito.

    Fui seu aluno e não tenho reserva em fazer-lhe estes elogios, quer porque são inteiramente merecidos, quer porque o tempo e as contingências da vida nos distanciaram. Mais tarde, ambos fomos docentes no mesmo estabelecimento de ensino. Nos intervalos das aulas, o senhor padre Telmo era o grande animador. Emprestava aos seus relatos uma vivacidade e um colorido invulgares servidos, ao nível da linguagem, por uma fluência de político e uma dicção de ator. Sabia rir das situações em que ele próprio e os seus estavam incluídos.

    – Faço viagens ao Porto – começava – com certa regularidade, e habituei--me a dar boleia a pessoas que vejo caminhando pela estrada. Certa vez, reparei numa jovem senhora que se fazia acompanhar pelo filho, um miúdo de sete ou oito anos. Abrandei e convidei--os para entrar no automóvel. A senhora, a princípio, fez de conta que não era com ela enquanto o pequeno lhe puxava pela mão, desejoso de seguir mais comodamente. A mãe, olhou-me, altiva, e disse com todas as letras: «Olhe aqui, senhor. Aceito porque o garoto me está a pedir e já vai cansado, senão bem podia ficar aí parado que eu não queria saber, tenho boas pernas para andar».

    Ria-se com vontade a lembrar a cena e concluía:

    – Ainda se fosse bonita! Mas Deus não a tinha favorecido muito…

    Falava do pai com ternura na voz o que não o impedia de comentar, divertido, os cuidados que tinha para se calçar nas gélidas manhãs de inverno em que, antes de mais, acendia o lume e só quando estava bem espevitado é que pegava nas botas, sentava-se na sua banquinha preferida e dava início ao ritual:

    – Pegava primeiro na bota esquerda, abria o fecho, aproximava-a do lume, aquecia-a bem, tendo o cuidado de ir apalpando a certificar-se de que estaria como desejava, aquecia também o pé, enfiava a bota rápido para não perder réstia de calor e logo puxava o fecho. Repetia os movimentos em relação à bota e ao pé direitos. Já depois de calçado, ainda estendia uma perna e a outra até sentir os pés bem confortáveis.

    Referia-se também às partidas que pregava ao irmão deficiente desde que, em miúdo, fora acometido de meningite, doença que ceifou a vida de outro dos seus irmãos. Aquele, já adulto, era quem botava a cria 2, já que essa era uma tarefa para a qual não se requeria força nem agilidade de raciocínio. Enquanto os animais pastavam, ele brincava “às casinhas”. O senhor padre Telmo escondia-se atrás da parede e com uma pedra derrubava-lhe as construções. O irmão olhava mas não conseguia descobrir o autor da proeza. Resmungando, voltava a erguer as casas mas logo a mão invisível lhe inutilizava o esforço. Irritava-se, praguejava e não desistia de procurar o “inimigo” a quem prometia castigo à medida do atrevimento, enquanto o senhor padre Telmo ria perdidamente. Quando achou que a brincadeira já tinha perdido a graça aparecia, aparava o golpe do cajado que o irmão usava, acalmava-o e, passando-lhe a mão pelo ombro, conduzia-o até casa.

    Havia tanta expressividade na mímica que utilizava, tal grau de adequação do gesto à palavra, uma sinceridade, uma alegria e um carinho no seu riso que nós, os ouvintes, éramos levados ao paroxismo e explodíamos em gargalhadas esfusiantes e axiomáticas como quando éramos crianças acontecia só de olharmos uns para os outros.

    Considerando as suas raras qualidades de inteligência, liderança e humanismo, tornou-se-me incompreensível que não o tivessem enviado para Roma, a expensas da diocese, com o objetivo de ampliar os seus estudos como a outros, talvez menos dotados, foi proporcionado. Exerceu, com o brilhantismo já referido, funções de relevo em órgãos da diocese mas tê-lo-ia feito ainda com maior proveito para a comunidade a que pertence.

    1 bom de papo (brasileirismo) – bom conversador

    2 botava a cria – conduzia os animais de trabalho para o lameiro e tomava conta deles.

    Por: Nuno Afonso

     

     

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