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Edição de 31-03-2024
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    Arquivo: Edição de 15-09-2010

    SECÇÃO: Crónicas


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    Contra o esquecimento

    Os camponeses mais madrugadores, que deixavam o desassossegado leito nocturno a pensar em maior rendibilidade do seu trabalho e nas melhores condições físicas para os animais de tiro, rasgavam o imponderável silêncio da antemanhã, rumo às leiras da serra, que, de há séculos, vêm proporcionando “o centeio nosso de cada dia,” ou às veigas úberes cujos chãos sempre lhes concederam a batata, o renovo e boa parte da alimentação das crias.

    Em pé sobre a aixeda do carro de bois, observavam a superfície das poças de regadio que, em noites de Primavera e Verão, reflectiam ainda a derradeira claridade do luar na imóvel serenidade das suas águas e, no Outono e Inverno, formavam espessa toalha de carambelo (1), que lhes dava um aspecto fantasmagórico acentuado pelos “fusos”, espécie de estalactites, em que o gélido ar da madrugada solidificara os últimos fios de água surpreendidos ao precipitarem-se de pequenos saltos das agueiras (2).

    Esta natureza, aparentemente estática, escondia um mundo de sonhos, os que já tinham sido e, sobretudo, os que viriam ainda, uma série de interrogações que encontrariam respostas num futuro imediato ou a médio prazo, impulsos vitais que dariam continuidade a iniciativas já tomadas ou a realizarem-se no desenrolar do tempo. Tudo isto acontecia na mente das pessoas, orientado para objectivos individuais ou colectivos, restritos ou solidários, construtivos ou de má intenção, consoante a índole das gentes ou as circunstâncias de cada um. Havia aqueles cujo apego aos bens materiais os tornava cegos, surdos e mudos a tudo quanto ocorria à sua volta e que não fosse do próprio interesse; outros que desconfiavam de tudo quanto alguém lhes propusesse com receio de serem tomados por falhos de inteligência ou sobejos de ingenuidade, v.g.(3) a proposta de troca de uma parcela de chão que confinasse com terra do proponente por outra deste, de valor semelhante, que fizesse margem com uma que fosse pertença do destinatário da oferta; os que tentavam mudar os marcos que delimitavam a sua leira de outra contígua assim roubando alguns centímetros que para nada lhes serviam, não mais que um cibito (4) de pão ao ano e um dedal de farelo para a vianda dos porcos; ao contrário, os (as) que acudiam sempre às dificuldades dos vizinhos ou que gostavam de presentear uma pessoa de quem recebiam atenção especial ou ainda para manifestar a alguém particular estima; finalmente quem assumia um cargo para beneficiar a comunidade sem que daí resultasse qualquer retribuição ou que, generosamente, se disponibilizava para melhorar as condições de vida dos seus iguais.

    Antes de terminar a década de 50 do último século, a vida dos lavradores nordestinos seguia os parâmetros de gerações anteriores: valores morais, alicerçados no catolicismo, pelo qual pautavam a sua conduta; tradições cuja origem longínqua e vária os próprios moradores desconheciam mas em que se empenhavam com devoção; um comunitarismo mitigado para compensar o abandono a que, ao longo dos tempos, foram votadas as terras de Além-Marão. Conformados com esse isolamento, praticavam uma agricultura de subsistência, apoiada em equipamentos arcaicos de tracção animal como o arado de madeira ou a charrua com rodado e relha de ferro, apoiados por carros também construídos de madeira e rodas revestidas com chapa de ferro, num trabalho insano que requeria tantos braços quantos a família tivesse ao dispor, fertilizando as leiras com adubo orgânico retirado dos estábulos ou das estrumeiras dispostas ao longo dos caminhos. Em consequência, as famílias eram, em geral, numerosas, os filhos que Deus concedesse a cada casal tinham por único horizonte o que, objectivamente, os seus olhos viam, sem o amplificador recurso da instrução que não ia além do Ensino Primário e muito poucos completavam. Raramente alguém procurava um médico: males físicos, indisposições, dores, fracturas eram enfrentados com infusões e outras mezinhas ancestrais sem falar no recurso ao endireita, mescla de médico e de bruxo, que punha ossos e tendões no seu lugar, tudo envolto numa Fé inabalável de consultado e consulente. As casas não possuíam água canalizada e ninguém parecia incomodar-se com a ausência de saneamento. Até nas vilas e nas cidades havia muitas casas que ainda não possuíam quartos de banho ou algo que o valha.

    Foi este o cenário da minha infância e adolescência. O choque emocional que experimentei ao deparar com aquela forma de viver traduziu-se numa pergunta que fiz à minha mãe e que traduzia o desencanto de uma criança de cinco anos a quem tinham pintado um quadro idílico da sua terra:

    – “Ih, mamãe, qui Portugau é esse?”

    Esta frase, na sua inocente singeleza, talvez tenha feito vibrar todas as cordas da sensibilidade dos meus pais. O mundo donde vínhamos era, em quase tudo, diferente deste e o meu pai entendeu que poderia fazer alguma coisa para melhorar a vida do seu povo sem prejudicar os sonhos pessoais que o haviam trazido de volta a Portugal. Nomeado para a Junta de Freguesia, decidiu quebrar as práticas rotineiras e abrir novos caminhos.

    A disponibilidade de água para o consumo doméstico resumia-se a um fontanário no centro da povoação constituído por uma bica que jorrava em contínuo e um tanque onde os quadrúpedes se dessedentavam. No entanto, a aldeia repousava em imenso lençol friático, aqui e ali irrompiam nascentes e à volta de algumas delas os moradores de outrora haviam construído rústicas “fontes de mergulho” onde os mais próximos enchiam cântaros ou jarros para o consumo da casa. Fossem lá dizer--lhes que podiam assim contrair graves doenças, pela exposição da água aos micróbios transportados pelo ar, aos que as vasilhas traziam consigo, além de outras impurezas adrede atiradas para o seu interior pelo garotio ou por marmanjos atraganados. Responderiam que muitas gerações nelas e delas tinham matado a sede e que ninguém, ao que constava, teria morrido por essa razão. Ficava-lhes à porta de casa, embora a prevista localização do fontanário não ficasse mais distante. Quando o meu pai comunicou que o projecto tinha sido aprovado pela Câmara, houve protestos, impropérios e ameaças a ponto de ter sido obrigado a participar à Guarda Republicana que se deslocou à aldeia para prender os insubordinados. Teriam permanecido nas celas daquela força militarizada se o próprio queixoso não diligenciasse para que fossem libertados. O início das obras não demorou porque o meu pai disponibilizou-se para que as condutas da água desde o depósito, a montante, até à aldeia atravessassem uma propriedade sua, abreviando a execução. Foram construídos outros fontanários, semelhantes ao quem já existia, nos sítios mais adequados à boa distribuição da água por todos os bairros do povo.

    O requerimento apresentado à Câmara para calcetamento das ruas da aldeia, antes de 1950, foi uma iniciativa absolutamente inédita num tempo em que ainda se faziam estrumeiras nas ruas e o percurso entre a cidade e a aldeia se fazia por vias periodicamente cuidadas pelos aldeãos. Atrevo-me a dizer que só as povoações atravessadas por estradas nacionais conheciam a pavimentação em macadame e apenas no trecho que interessava para o fim a que se destinavam. Era caso para dizer que não serviam essas aldeias, serviam-se delas para cumprirem os seus propósitos. Não obstante a minha pouca idade, lembro-me de termos hospedado o engenheiro da Câmara que ali se deslocou para efectuar os estudos e instruir o projecto requerido, não pela sua figura senão pelo estranho nome que o identificava: Engenheiro Gajo. Pouco tempo depois, o meu pai voltou para o Brasil donde só regressaria dezoito anos mais tarde. Um dia, conversando com o senhor Adriano, que foi nosso caseiro e sucessor do meu pai na Junta de Freguesia, perguntei-lhe que fim conhecera o projecto de calcetamento das ruas:

    - Não faço ideia – disse-me –, fui algumas vezes à Câmara mas diziam-me sempre que o assunto estava a andar, que essas coisas levam tempo, havia muitos estudos a fazer, ainda não tinha sido incluído no orçamento autárquico, talvez para o ano…

    – Pois… na altura devia ser algo tão estranho como as galinhas nascerem com dentes. Imagino se um tal projecto fosse executado! Muitas outras aldeias haviam de reclamar o seu direito a igual tratamento o que desencadearia um aumento significativo nas despesas do Estado e algumas barras de ouro a menos nos cofres públicos. E nunca mais se falou no assunto?

    – Enquanto estive na Junta, o assunto ficou totalmente esquecido. Um dia tirei-me dos meus cuidados e fui conversar com um amigo que tenho no sector das Obras Públicas. Prometeu que me diria alguma coisa dali a uns dias. Quando voltei a procurá-lo, garantiu-me que não tinha encontrado rasto do referido projecto, que não se encontrava em nenhum departamento da autarquia. Para todos os efeitos nunca existiu.

    Foi a primeira decepção política da minha vida. Os chamados “homens providenciais”, afinal, são como as nogueiras: por maior que seja a importância que assumem, nada cresce à sua sombra. O governo do país fazia estiolar qualquer ideia criadora e inviabilizava a sua aplicação e desenvolvimento.

    Na sua actividade enquanto empresário agrícola, introduziu a cultura da batata certificada, técnicas de produção e conservação (silagem) e deu trabalho a muitas pessoas da aldeia. Lamentavelmente, um conjunto de factores (maus anos agrícolas, doenças da batata, desastrosa política do governo para o sector) impediu-o de perseguir o sonho que acalentava.

    Era um pai extremamente zeloso em relação à família, movia céus e terra sempre que algo ameaçava a saúde e a tranquilidade dos seus. Alguns dos filhos - incluo-me nesse número –, ficaram a dever-lhe a vida. Queria que todos fôssemos estudar e também nisso exerceu grande influência na comunidade. Pena é que homens assim venham a ser esquecidos.

    (1) Carambelo - designação dada ao gelo;

    (2) Agueira - pequena vala por onde a água da rega circula;

    (3) v.g. (verbi gratia) – a título de exemplo;

    (4) Cibito - pedacinho, bocadinho.

    Por: Nuno Afonso

     

     

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