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    Arquivo: Edição de 28-02-2009

    SECÇÃO: Crónicas


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    O tempo e a memória

    Coisa espantosa, a memória! Além de permitir que nos situemos em relação ao mundo e a nós próprios, concede-nos a possibilidade de colocar em paralelo épocas e lugares, pessoas que já o foram e ainda o são nela, único lugar, aliás, onde a sua presença é real e ali revivem situações e diálogos que se mantêm vivos e actuantes como se o tempo não existisse ou como se estivesse suspenso nos ramos da cerejeira, nas hastes dos juncos, no ouro que polvilha os cabeços.

    No fundo da cortinha existia uma macieira verdial e, ao lado, a foto da família: três gerações, o avô como que a esconder-se atrás, a avó no meio com o neto mais novinho ao colo, os filhos colocados por ordem de altura, certamente indicações de quem empunhava a máquina: “ O João e o Alfredo na última fila, a seguir o Manuel um pouco mais à frente deste lado (e apontava para a direita), naquela ponta o Francisco (e o fura-bolos da mão esquerda a indicar o outro extremo), depois ficam a Maria e a Antónia, a Matilde e o José aqui um poucochinho mais à frente. Assim está bem.” O convidado podia ficar ao lado dos mais altos, isto não o disse o fotógrafo, somos nós que o afirmamos com base na lógica do alinhamento, ainda que tivesse uma boa mão travessa menos do que o Alfredo, porém umas polegadas a mais do que os que vinham no cordão da frente, levando em conta que o terreno fosse mais ou menos regular, é muito provável que o não fosse.

    Este, que por último referimos, despertava sempre a curiosidade do ocasional observador: “E este quem é?” mas havia logo quem esclarecesse o mistério, não se tratava de qualquer exercício para testar a argúcia dos menos familiarizados, tipo descubra o intruso. Era um entre muitos que mantinham relações de amizade com a família ou algum dos seus membros o que vinha a dar no mesmo.

    Era, com certeza, dia de festa, todos de fato e gravata, mesmo o José com seis ou sete anos, poder-se-ia assegurar. O avô não tem gravata, que homem de aldeia respeitado pelos seus conterrâneos, não usa essas modernices, isso é para os mais novos. O amigo da família parece usar laço em lugar de gravata. Dir-se-ia que ensaiaram a pose ou não quiseram destoar do mais velho, porque ninguém adoptou uma postura descontraída, estão todos sérios como se assistissem a uma cerimónia protocolar, quem visse a foto não haveria de dizer que eram tolinhos.

    Dos elementos desta família cada um percorreu a sua distância, convencido de que o tempo estava suspenso, conquanto soubessem que não era verdade, outros viriam depois, alguns iniciavam agora a sua caminhada, um certo número tinha já palmilhado o seu tanto, aquele que se encontrava ao colo da avó ainda não tinha pensar para tais coisas.

    Há uma corrente de pensamento que nega a existência do tempo, teria sido o homem que inventou essa como outras categorias para tornar inteligível o seu mundo e a própria vida. Porém será necessário distinguir entre a vida e a memória. Esta perdura e alonga-se mesmo para além da própria existência, em formas diferentes, é certo, pode reduzir-se a um nome destituído de matéria corpórea e das características que o individualizaram e assim permanecer, quase indefinidamente, enquanto houver um registo escrito, por centenas, milhares de anos, levando em conta o que os nossos antepassados convencionaram. Esta certeza, relativamente ao tempo, ajuda à fixação da memória que, não fora assim, extinguir-se-ia em breve como a onda que vem morrer na areia da praia. Na ausência de documentos escritos, a memória desvanecia-se finda a geração seguinte.

    Ocorre-me a personagem do anão, em “A Floresta” de Sophia de Mello Breyner Andresen que se orgulhava de pertencer a um tipo humano em que os indivíduos viviam quinhentos anos. Sabia muitas coisas porque, segundo ele, os pais transmitiam aos filhos todo o conhecimento que haviam adquirido, oralmente, e que remontava a um milénio, pelo menos. É claro que muitas coisas se perdiam nesse peregrinar de muitos séculos, embora o mais significativo e distintivo perdurasse muito para além desse já longo período mesmo na ausência de memorando conhecido.

    E, como as ideias se conectam, repare-se que tem aumentado a expectativa de vida da nossa espécie de geração em geração, sobretudo no último século, graças aos avanços da medicina e aos cuidados de higiene e de alimentação. No início desta década, a esperança média de vida era de 82 anos para as mulheres, alguns anos menos para os homens, nos países mais desenvolvidos do mundo. Em entrevista concedida à revista “Visão”, em Novembro de 2001, Étienne Émile Baulieu, um dos maiores especialistas do mundo em envelhecimento e longevidade, mostra-se entusiasmado com o número de pessoas que atingem e ultrapassam em muito os cem anos de vida, mas não o suficiente para admitir que possa não haver limite num futuro mais ou menos longínquo. Ele considera que “há um limite para a espécie, porque tudo depende do conjunto de genes que temos e transmitimos mas também das circunstâncias externas.” E mais adiante informa: “ O que existe dentro dos cromossomas, certamente que tem um determinado limite, mas não sabemos ainda o que já alcançámos e onde estamos verdadeiramente. O interessante é que, antes eram os padres que falavam de imortalidade, hoje são os cientistas.”

    Tal como os atletas que, continuamente, batem recordes, também a longevidade humana tende a crescer a cada novo censo realizado num país ou grupo de países. O que sabemos é que, no mundo físico, há poucas certezas. O número de pessoas que atingiram ou ultrapassaram os cem anos de vida é já da ordem de vários milhares em países desenvolvidos. O progresso registado actualmente nas ciências médicas é espantoso e não custa a crer que, num futuro próximo, o que os cientistas consideram impossível se apresente realizável e até comum. Se, entretanto, não se registarem cataclismos de enormes proporções capazes de destruir tudo quanto a Ciência e a Fé erigiram e continuam a desenvolver, todos saberemos que o tempo não só não está suspenso como, de verdade não existe e que a memória pode deixar de ter qualquer sentido.

    Por: Nuno Afonso

     

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