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    Arquivo: Edição de 20-09-2008

    SECÇÃO: Crónicas


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    Chico e Maria

    Bem vistas as coisas, o casamento da Maria e do Chico era considerado, pelas gentes das aldeias em que viviam, de todo improvável. Nos tempos que o antecederam, ninguém ousaria sequer adiantar essa hipótese. Antes de mais, porque o Chico namorava a Sância Rijo havia alguns anos, com agrado das respectivas famílias, e o seu irmão Manuel casara com a Gracinda, irmã dela. Depois, porque a Maria e o Chico eram primos em primeiro grau, a convivência entre eles era de natureza diversa e, embora não fosse caso raro, a Igreja colocava algumas restrições a tais matrimónios. Ademais, Maria tivera, desde os oito anos, a responsabilidade exclusiva de cuidar do pai e dos dois irmãos mais novos, porque a mãe falecera quando eram todos muito pequenos o que a tornara adulta sem jamais ter sido criança ou jovem. O governo da casa pesava sobre os seus ombros, não participava em divertimentos das raparigas da sua idade porque a família estava em primeiro lugar. Ia a casa dos tios em Alimonde por ocasião da matança dos porcos, na festa da aldeia, em casamentos ou baptizados de familiares e pouco mais.

    O Chico, sete anos mais velho, embora obediente às determinações dos pais, não perdia o ensejo de se divertir nas romarias das redondezas, concitando simpatias de muitas jovens, quando Maria era ainda criança. Também ela o olhava com admiração e, à medida que ia crescendo, não seria de estranhar que um sentimento mais profundo lhe fosse tomando o coração.

    Um choque de personalidades veio, no entanto, colocar ponto final no namoro do Chico e da Sância: dificuldade de última hora impedia o Chico de acompanhar os jovens da terra à festa de Castrelos e a Sância manteve a intenção de ir sem ele. “Vou!” – dizia ela; “Não vais!” – ripostava ele. Mas ela foi e o Chico encerrou ali esse curto capítulo das suas vidas.

    Aos vinte e dois anos Maria amadurecera de tal modo que nenhum acontecimento imprevisto a colhia de surpresa. Não estranhou, por isso, a visita do Chico que viera a Vila Boa num “dia solto”, em época de grande azáfama no campo. Pensou que tivesse vindo trazer algum recado para o seu pai ou que, vindo à aldeia com outro objectivo, resolvera entrar para os ver. Percorrera, a pé, os cinco quilómetros, mais coisa menos coisa, que separavam as duas aldeias, e nem lhe passou pela cabeça que teria sido mais romântico chegar montado na égua, prendê-la no sopé da escada e subir os degraus aos pares, apresentando-se, de súbito, na sua presença. Mas não se coadunaria nem com as expectativas dela nem com a intenção que ali o trouxera. Maria nunca ouvira contar histórias maravilhosas, a figura do “príncipe encantado” não fazia parte do seu imaginário, o seu dia-a-dia nada tinha de mágico ou poético: resumia-se a coisas concretas como as tarefas domésticas e as comezinhas atenções ao agregado familiar de que fazia parte.

    Quando o Chico disse ao que vinha, Maria quis mudar o rumo da conversa mas leu-lhe no olhar a determinação e o realismo de que vinha possuído. Tratava--se de uma proposta de casamento. O Chico expôs com clareza que sempre gostara dela mas que, sendo ainda muito nova, olhara antes para alguém da mesma idade até ter-se convencido de que não era a mulher com que sonhava, o episódio que tanto dera que falar tinha sido apenas a gota de água a fazer transbordar o copo. Estava convencido de que tanto ele como a Sância arrastavam aquele namoro porque era do agrado das famílias. Maria era uma mulher bonita, gostava muito dela e entendia que juntos podiam ser felizes. Ela lembrou--lhe a situação em que se encontrava, o pai já idoso e aduziu outras razões que, no seu entender constituíam obstáculos ao casamento. O Chico concordou em dar--lhe algum tempo para pensar. Ele pretendia emigrar para o Brasil, os documentos já faziam o percurso normal em tais casos, mas queria, antes, constituir família.

    O tio Graciano, pai da Maria e tio do candidato a genro, mostrou-se agradado com a ideia do enlace e o consentimento foi transmitido ao Chico. Todavia, a viagem dele já estava marcada e a dispensa da Igreja por via do parentesco demoraria ainda algum tempo. Combinaram que o Chico partiria, deixando procuração para que o casamento pudesse realizar-se sem a sua presença física. Só alguns meses mais tarde os dois se reuniram no Rio de Janeiro.

    Os primeiros tempos de vida em comum foram difíceis, mas enfrentados com coragem e esperança. Uma vez desembarcado, o Chico encontrou trabalho no escritório duma empresa de automóveis e Maria lavava e engomava roupa para fora. O futuro afigurava-se-lhes promissor tanto mais que o primeiro filho não tardou a chegar. No emprego, o bom desempenho do Chico era elogiado, em breve foi promovido a gerente e não demorou a assumir o cargo máximo de superintendente. Viviam-se os tempos difíceis da 2ª Guerra Mundial, O Brasil aderia aos Aliados e a população foi submetida a racionamento nos bens de consumo. A gasolina estava incluída nesse pacote pelo que os automóveis, incluindo os de aluguer, viram tolhidos os seus movimentos. Como superintendente, o Chico estava autorizado a gastar combustível sem qualquer restrição. Já anteriormente possuía um táxi e foi acrescentando os seus efectivos até ao máximo de cinco veículos em circulação irrestrita. As economias cresciam e abriam-se-lhes excelentes perspectivas.

    Foi então que o Chico cometeu um erro sem resgate: voltar a Portugal e investir as poupanças na sua terra. Maria, embora contrariada, concordou. Chegaram à terra com dois filhos e desejo de vencer. Porém as condições não eram lisonjeiras. O Chico tentou tirar proveito das propriedades que, entretanto, herdara após o falecimento do pai e do sogro. Muito se falava na produção de batata certificada e, por toda a região transmontana, os agricultores começavam a lançar as sementes do negócio. O Chico adquiriu terras, arrendou lameiros que arroteou para cultivar batata e entrou decididamente nessa actividade. No entanto, nuns anos, as condições climatéricas; noutros, moléstias de todo inesperadas e sempre políticas agrícolas desastrosas estilhaçaram o seu projecto de vida empresarial. De tudo sobrou a honradez que sempre demonstrou nas relações mantidas nos negócios e mantiveram o seu nome impoluto.

    Reconheceu que era chegada a hora de voltar ao país onde a vida lhe tinha sorrido, deixando, agora, a esposa e seis filhos para trás. Encontrou um Brasil diferente, mas, de início, as coisas correram bem. Dedicou-se ao comércio alimentar e parecia ter encontrado, mais uma vez, o rumo certo. Veio a Portugal visitar a esposa e os filhos e aproveitou para acrescentar a família. De novo, em terra carioca, prosseguiu a luta mas, erros próprios e circunstâncias adversas impediram-no, muitas vezes, de enviar as verbas necessárias à educação dos filhos que foram crescendo e prosseguindo os estudos.

    Maria teve, nesta longa etapa, o papel mais penoso, visto recair-lhe nos ombros o serviço da dívida acumulada e o custeio dos estudos da numerosa prole. Ao longo de muitos anos, viveu autêntico calvário com pagamentos periódicos, diria quase constantes, a que nem sempre estava preparada para dar resposta atempada. Valeram-lhe os amigos aos quais recorria nesses momentos de aflição.

    - Muitas vezes lhe vi as lágrimas a correr quando me vinha pedir auxílio. – dizia o senhor José Caetano, um desses amigos.

    Percorreu um calvário em extremo doloroso com a longa separação do marido e as dificuldades financeiras. Também o Chico teve a sua parte na longa travessia dum deserto em que a solidão e a saudade vieram adicionar-se a todas as dificuldades que ambos viveram.

    Por: Nuno Afonso

     

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