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    Arquivo: Edição de 15-05-2008

    SECÇÃO: Crónicas


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    Uma história nada dignificante

    Não obstante o abatimento que demonstrava e, porventura, a verdade do seu carpir, poucos se terão deixado sensibilizar com tamanha compunção durante as cerimónias fúnebres. Os habitantes da aldeia conheciam bem toda a história, uma vez que a defunta senhora Orquídea e o Armando, seu filho, eram dali naturais, embora este tivesse descido muito na estima dos conterrâneos.

    A senhora enviuvara muito cedo, era o filho ainda bebé e, como tão frequentemente acontece, teve de assumir a dupla função de pai e de mãe para fazer dele um homem. Tinha “bens ao luar”: uma vinha, lameiros e terras de semeadura, além da casa e da cortinha onde gostava de cultivar o renovo e a batata que a pequena família consumia, além de várias espécies de flores para alegrar a habitação e levar amiúde à sepultura do marido. Havia, ali, também duas macieiras, um pereiro e uma cerejeira, a árvore preferida do Armando, que dava cerejas embroesas, carnudas e sumarentas que ele repartia com os amigos.

    Frequentou a escola primária da aldeia e revelou-se um bom aluno a pontos de o senhor padre recomendar à mãe que o enviasse para o Seminário. O menino andara na catequese, abeirava-se dos Sacramentos, ajudava à Missa, respondendo ao celebrante num latim macarrónico que com ele aprendera, era um exemplo para todas as crianças do lugar. Explicou-lhe que, no Seminário, os rapazes pagavam uma pequena anuidade, ele próprio escreveria ao prelado da diocese, enaltecendo as virtudes do candidato e solicitaria um abatimento na anuidade, pelo facto de a mãe ser viúva e ter dificuldades económicas.

    A senhora Orquídea amadureceu a ideia, fez contas à vida – ela sempre conseguia economizar umas notas, ano a ano –, e respondeu afirmativamente à sugestão do pároco.

    Foi assim que o Armando entrou no Seminário, ia no fim a década de quarenta do século passado. Por lá se manteve com bons resultados até completar o oitavo ano, último de Filosofia. Esse era o tempo da decisão para a grande maioria dos seminaristas: ou seguiam para o curso de Teologia com vista ao sacerdócio ou abandonavam o Seminário, para prosseguirem estudos no Liceu, quiçá para arranjarem emprego nas Finanças, nos Correios, na Câmara, quem sabe numa empresa ou num banco…

    Conseguiu lugar numa firma em posição modesta, com o empenho de um amigo da família que vivia na capital, e, não obstante a consternação da mãe, seguiu para Lisboa. Alugaram-lhe um quarto modesto na zona dos Anjos. Para começar, foi difícil adaptar-se a uma vida totalmente nova mas, em breve, conheceu lugares e estabeleceu contactos, subiu um degrau na empresa, arranjou namorada, que foi mostrar à mãe num fim--de-semana de Outono. A senhora Orquídea não ficou especialmente impressionada com a futura nora, mas absteve-se de o demonstrar. Dispensou-lhe todas as atenções levou-a a passear pela aldeia e apresentou-a a familiares e amigos mais próximos. O Armando quis obter da mãe impressões acerca da namorada mas ela foi diplomaticamente evasiva. Aprazou-se a boda e, como a noiva ganhava um salário equivalente ao do Armando, alugaram uma habitação a pequena distância dos respectivos empregos. Casaram, segundo os cânones da Igreja Católica, na presença dos mais íntimos familiares.

    A senhora Orquídea escrevia ao filho, com regularidade, cartas singelas, falando da sua saúde, perguntando pela dele, referia os acontecimentos da vida da aldeia mas dele recebia mensagens lacónicas, espaçadamente, justificando a demora com o trabalho e a falta de tempo. Certa ocasião, a carta do Armando continha um ou dois gordos parágrafos de acréscimo. Ficou contente, porém logo o encantamento se desvaneceu. O Armando propunha-lhe que vendesse as propriedades e viesse morar com eles em Lisboa. Ainda não tinham filhos e havia um quarto vazio à sua espera. Ele e a mulher gostariam imenso de a ter consigo, além de tudo o mais, por via da distância que os separava. Junto deles, teria tudo à sua disposição, não precisava de se incomodar com nada. Iriam juntos passear, ao domingo, pelos sítios bonitos da capital. Para melhor a convencer, afirmava:

    – A senhora nem faz ideia de como Lisboa é bonita! Há o Tejo e toda a zona que corre ao longo da margem direita, a Torre de Belém, os barcos à vela no rio, os jardins maravilhosos, praças enormes, igrejas antigas… Para mais, a mãe não tem que trabalhar nem preocupar-se com o estado das culturas.

    FORAM BONS

    OS PRIMEIROS TEMPOS

    Ilustração RUI LAIGINHA
    Ilustração RUI LAIGINHA
    «Deve ser um paraíso – reflectiu – mas esta é a minha terra. Aqui tenho todas as minhas lembranças. Por outro lado, viver junto do meu filho seria muito bom! Que hei-de fazer?».

    Desta vez, o assunto a ponderar era bem mais complexo. Varou noites sem pregar olho, noutras sofria horríveis pesadelos. Então, decidiu pedir ajuda ao cunhado, João Alberto, homem assisado e que sempre a ajudara nos momentos difíceis. Ele deixou-a falar e sentenciou:

    – Se fosse a ti, não faria isso. É teu filho, mas lembra-te de que é casado e, antes de te ouvir a ti, entende-se com a mulher. Ela é que tem o mando da casa. A corda, a partir, parte do teu lado, podes ter a certeza. Este é o meu pensar. Tu faz o que achares melhor. Em todo o caso, se quiseres, posso ir “apalpando terreno” quanto a possíveis compradores. Fico à espera das tuas ordens. Mas já te aviso que há pouco quem queira comprar e, se tens pressa de vender, não te dão o que as terras valem.

    A senhora Orquídea agradeceu a sinceridade do cunhado, mas autorizou-o a avançar. O João Alberto assim fez e a notícia espalhou-se como fogo de Verão. Tudo se passou conforme ele previra. Hoje uma terra, daqui a um mês um lameiro, depois a vinha, ao fim de um ano, quase tudo fora (mal) vendido, excepto a casa e a cortinha anexa. Com que júbilo a senhora Orquídea escreveu ao filho a dar-lhe conta do sucedido e a informá-lo de que seguiria na outra semana! De comboio, naturalmente.

    Lá a esperavam, em Santa Apolónia, o Armando e a Armandina. Para a senhora Orquídea era um sonho, finalmente concretizado, passar a viver com o filho o resto dos seus dias.

    Foram bons os primeiros tempos. Embora passasse toda a semana enclausurada, distante do seu mundo, ao domingo tinha a oportunidade de ver lugares como nunca imaginara, Sintra, Cascais, Estoril, belos estabelecimentos comerciais com grandes montras povoadas de artigos lindíssimos, monumentos que nem supunha pudessem existir. A nora mantinha distância, mas o Armando desfazia-se em atenções com ela. Era bom de mais para ser duradouro.

    No seguimento de algumas insinuações quanto à dificuldade de as pessoas se deslocarem em Lisboa e de olhares demorados aos automóveis expostos nos stands, um dia, o Armando reuniu forças bastantes e pediu à mãe que lhes emprestasse dinheiro para comprarem um veículo, não precisava de ser dos mais caros, talvez uns trinta contos chegassem, até podia ser menos, porque conhecia um comerciante que era capaz de lhe fazer um preço jeitoso. Estrategicamente, a Armandina fingia não serem contas do seu rosário mas a senhora Orquídea cedo entendeu que o filho não teria coragem para tanto se não fosse o aguilhão da mulher. Fez de conta que não compreendera, pediu alguns pormenores do negócio e disponibilizou a importância necessária. Partilhou a felicidade do filho quando este se lhe apresentou ao volante dum reluzente modelo da Fiat, o automóvel mais cobiçado pela classe média desse tempo, e a convidou para um passeio pelas principais artérias da cidade.

    Pouco tempo depois, o Armando fez-lhe outro pedido: precisavam de uma mobília a sério, em casa havia apenas os móveis indispensáveis para os actos rotineiros. Ela achou razoável a justificação. A partir daqui, os pedidos sucederam-se e, um dia, ela confessou ao filho que o seu dinheiro tinha acabado. Então aconteceu algo que jamais pudera imaginar: a nora passou a hostilizá-la, não perdia ocasião para lhe demonstrar o seu desprezo, passou a maltratá-la por palavras e actos, sobretudo quando o filho estava ausente. Ele próprio tinha mudado, mal lhe falava, a pretexto de ocupações várias. Resistiu enquanto pôde, mas, um dia, não aguentou mais e pediu ao filho que a levasse à estação para regressar a sua casa.

    Apesar do apoio que recebeu de familiares e amigos, o desgosto consumiu a sua já débil saúde e a morte antecipou-se a qualquer atitude de arrependimento do filho. E o Armando ali estava agora, prestando-lhe a última e tardia homenagem.

    Por: Nuno Afonso

     

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