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Edição de 30-04-2024
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    Arquivo: Edição de 10-12-2007

    SECÇÃO: Crónicas


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    Diamantina: a flor do sertão

    Coisa mais bela neste mundo não existe

    do que ouvir-se um galo triste

    no sertão se faz luar.

    Parece até que a alma da lua que descanta

    escondeu-se na garganta

    desse galo a soluçar.

    Não há, ó gente, oh não,

    Luar como este do sertão!

    Eram cinco horas da manhã e a lua ainda brilhava no céu. Esperava-nos um vento glaciar típico do sertão, ali bem perto. De súbito, o cantar de um galo, algo que, há muito, não ouvíamos. Mal digerida a surpresa, e novo canto se fez ouvir e mais outro e ainda outro, a espaços breves. Seria a mesma ave ou diversas ao desafio?

    À espera que se fizesse dia, sentámo-nos num muro que circundava a estação rodoviária de Diamantina. Saídos de Belo Horizonte pelas 23 horas, com uma temperatura amena a pedir roupa leve, vimo-nos, de repente, trespassados pelo frio num quase descampado. Previdente, a minha mulher trouxera uma manta que o comissário de bordo da TAP, gentilmente, nos tinha oferecido, na viagem intercontinental. Envolvemo-nos nela, deixando de fora só o nariz e os olhos, mas a sua finíssima lã, destinada a espaços interiores, mostrou-se incapaz de resguardar eficazmente o calor dos nossos corpos. Ao fundo do alpendre, à espera dos primeiros clientes, havia um botequim cujas lâmpadas sobrepujavam em eficácia a modesta iluminação pública. Do seu interior vinha o cheiro esquisito de bolos de fubá na frigideira, acompanhado de sambas antigos e dolentes canções sertanejas. A nostalgia que a conhecida música normalmente desperta era vencida pelas sensações táctil e olfactiva que estávamos experimentando..

    A minorar o nosso desagrado, um cartaz publicitário da Visótica, afixado na parede em frente, incitava-nos a “ver o mundo com bons olhos”, acompanhando o slogan com o rosto bonito de uma criança, feliz com um par de óculos modernos. Não seriam o frio e aquele odor estranho a vencer-nos.

    Aos poucos ia amanhecendo. Já se distinguia o ambiente em torno, as pessoas começavam a movimentar-se, dispostas a abandonar o local. Os galos, em definitivo, haviam encerrado o programa. Aguardámos que se fizesse dia e fomos caminhando um pouco à sorte a dar tempo para que a cidade acordasse e justificasse a opção que fizéramos ao desviar a nossa rota para o Estado de Minas Gerais.

    Belo Horizonte, a capital, deixou-nos uma impressão globalmente pouco favorável. Não seria mais do que uma grande cidade, com o característico movimento comercial, a arquitectura modernista de primeira cidade brasileira planeada em final do século XIX, se não reflectisse o espírito empreendedor de um Prefeito, mais tarde Presidente da República e criador de Brasília, Juscelino Kubitsheck de Oliveira, ao acrescentar-lhe o Complexo da Pampulha. Projectado por Óscar Niemeyer a seu pedido, nos anos 40, embelezado pelo arquitecto paisagista Burle Marx e a que o grande pintor Portinari emprestou bastante do seu enormíssimo talento, é nos dias actuais e para o futuro, uma jóia que faz as delícias dos estrangeiros e infla de orgulho o peito dos belo-horizontinos. De todo o conjunto, merece destaque o lago artificial e, sobretudo, a Igreja de S.Francisco de Assis, obra de Niemeyer, envolta no paisagismo de Burle Marx e decorada por Portinari com a preciosa colaboração de Alfredo Ceschiatti na escultura do baptistério e de Paulo Werneck nas pinturas abstractas que decoram os azulejos da parede exterior da nave. Esta igreja rompeu com o tradicional estilo barroco e foi tão grande o seu impacto que a hierarquia da Igreja Católica brasileira só a reconheceu como digna de culto quinze anos depois de concluída.

    A visita a Diamantina inseriu-se no nosso desejo de revisitar as históricas cidades que foram cenário da exploração de ouro e diamantes pela Coroa Portuguesa no século XVIII. Já conhecíamos Ouro Preto e Congonhas do Campo. Escolhemos, desta vez, a cidade dos diamantes, porque este era um dos pontos finais dos bandeirantes no caminho criado pelo Rei de Portugal para a extracção dessas pedras preciosas. Havia outros motivos, no entanto, para a nossa opção: o facto de ser, actualmente, Património Cultural da Humanidade, ser a terra de nascimento do Presidente Kubitsheck, J.K (Jota Ká), como era mais conhecido, e ter sido palco dos amores proibidos do Intendente João Fernandes e da negra Chica da Silva. Gostaríamos de ter visitado também outras cidades tais como Mariana, Sabará, S.João d´El Rei e Tiradentes, porém as distâncias entre uma e outras é significativa e precisaríamos de uma semana para as apreciar como merecem. Acresce que Diamantina situa-se mais para norte, a 100Km dos vales de S.Francisco e Jequitinhonha, enquanto as restantes ficam para sul do Estado. Doutra vez há-de ser, “se Deus nos der vida e saúde”, conforme regista a sabedoria popular.

    Devo dizer que esta foi uma das cidades mais bonitas que já visitei. Todas as povoações que fizeram parte do circuito mineiro estão muito bem preservadas. Bastantes ruas do centro histórico de Diamantina conservam a calçada original de lajes irregulares e escuras. Exemplo disso é o Beco do Mota, imortalizado numa canção de Milton Nascimento, um “bom mineiro”. Há dezenas de igrejas de que se destaca a de Nossa Senhora do Carmo que abriga um órgão trabalhado em ouro com mais de seiscentos tubos. Dizem que a torre está nas traseiras do templo porque a escrava Chica da Silva se incomodava com o repicar dos sinos e exigiu que o contratador João Fernandes, seu amante, a distanciasse, capricho que ele satisfez. Seria fastidioso continuar falando de igrejas num país em que se construíram aos milhares desde o início da colonização. Digno de registo é ainda o chamado Caminho dos Escravos que os ditos percorriam entre o Tijuco e Mendanha para escoar diamantes, em sacos carregados aos ombros, e abastecer a cidade. Uma parte dessa via foi recuperada e tornou-se atracção turística.

    Outro motivo de atracção é a casa que pertenceu à família de Juscelino Kubitsheck de Oliveira. Percorrendo-a, pudemos conhecer melhor a vida do ex-presidente enquanto menino e jovem, bem como a vida heróica de sua mãe, professora primária que criou os filhos sozinha, uma vez que o marido morreu prematuramente, devido ao desregramento da sua conduta. Em honra de Juscelino, alguns músicos apresentam, dois sábados por mês, de Março a Outubro, das janela e sacadas do casario do Centro Histórico, serenatas que eram muito apreciadas pelo homenageado que as considerava mais belas do que “uma noite de trovadores em Nápoles”. Chamam-lhes “vesperatas” O interior da casa de Chica da Silva não se encontra disponível à visitação pública mas, do exterior, constata-se que deveria ter sido uma opulenta moradia.

    Mas, para além do traçado antigo da cidade e dos seus pontos de referência, o que mais cativa é a simpatia das suas gentes. Entrámos na cidade quando os estudantes demandavam as respectivas escolas e os adultos se dirigiam aos seus postos de trabalho. Encontrámos três meninas que frequentavam a 5º e a 6º série que, com toda a afabilidade, nos deram todas as indicações que desejávamos e nos deram as boas-vindas. Voltaríamos a encontrá-las, horas mais tarde, quando saíam das aulas. Quiseram saber como nos tinha corrido a visita e demoraram-se a ouvir-nos e a contar a sua vida. Mas, toda a gente que encontrávamos nos dava os bons-dias e muitos se ofereciam para nos ajudar. A proverbial sisudez e desconfiança dos “mineiros”não contagiou ainda esta gente. Que bom tê-los conhecido, cidadãos de Diamantina!

    Por: Nuno Afonso

     

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