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    Arquivo: Edição de 30-06-2006

    SECÇÃO: Crónicas


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    O Alípio

    O Alípio era, de todos nós, o mais desembaraçado e perspicaz. Quando vinha ao nosso encontro, sabíamos que havia novidade envolta naquele sorriso matreiro que tão bem conhecíamos. De certo aprendera alguma coisa que o tinha deixado contente e queria partilhar essa alegria connosco. E, enquanto se acercava, tentávamos descobrir o que seria, mas era esforço escusado. Sim, porque o Alípio era já de si uma surpresa. O resto vinha a seguir: ninho descoberto em tempo de criação, técnica para caçar pássaros ou apanhar peixes no rio, hábitos e particularidades dos animais de pastoreio, um par de namorados que alguém lobrigara em sítio recôndito e ele reportava quase a seguir.

    Não havia garoto mais jaroldeiro1 na povoação. Se “botava a cria”2 para lugares onde houvesse outros boieiros, pulava as paredes de vedação dos pastos, entre todos escolhiam um recanto onde pudessem brincar e trocar impressões sem perderem de vista os animais que tinham à sua guarda. Os lameiros da serra propiciavam encontros com os pastores que por ali apascentavam os rebanhos. Nas corriças3 em tempo de invernia ou à sombra dos carvalhos enquanto ovelhas e cabras “faziam a séstia”4, dividiam merenda e multiplicavam conversa em que abordavam os mais variados assuntos. Os pegureiros são doutores em natureza, conhecem espécies e seus habitats além de terem dos seus animais um conhecimento que se distribui por várias disciplinas.

    Por isso o Alípio era tão bem informado e sabedor. De repente, no meio de uma conversa, saía-se com um dito que deixava todos embasbacados. “Onde é que ele ia buscar tanta informação?” – questionávamo-nos. Se a pergunta lhe era feita, respondia com a simplicidade dos sábios: “Está tudo aí à nossa volta. É só reparar nas coisas, pensar e pronto.” Talvez fosse como ele falava, mas ninguém mais via do mesmo jeito que ele.

    Ilustração RUI LAIGINHA
    Ilustração RUI LAIGINHA
    Certo dia chegou mais açodado e feliz do que já era seu hábito:

    – Ontem jantei5 com os pastores. Andava com a cria em Vale de Sartas e fui ter com eles às touças6 do Alto da Serra. Andavam lá o Lando do Zecas, o Zora e o Ernesto.

    Figurar uma refeição ao ar livre, protegidos pela sombra das árvores, na companhia de gente mais crescida era bestial. Mas a picada da inveja tinha que vir ao de cima em jeito de desvalorização.

    – E o que é que comeram? – indagou o Ramiro. – Os pastores só levam pão e tiram o leite das cabras.

    – Isso é o que tu pensas. – retrucou o Alípio. – Levam muito mais coisas no bornal do que imaginas: arroz, batatas, cuscuz, presunto e chouriças, às vezes bacalhau, sal, unto e uma cabacinha de azeite para temperar.

    – Então comem melhor do que eu. – lamentou-se o Duarte. – É pão, batatas e caldo de couves ou de feijões e “viv’ó velho”.7

    – Isso não sei. Eles levam o que lhes dão em casa, uns mais outros menos. Eu só conto o que vi.

    Entretanto, a curiosidade acendia-se nos espíritos e criava lampejos de ânsia:

    – Mas ainda não disseste o que comeram? – insistia o Ligório, primo do Alípio.

    – Se eu vos disser, não ides acreditar. Depois não me chameis mentiroso! Comemos “Caldo de cuscuz e passarinhos”.

    – Oh!!! – Foi a exclamação que em uníssono brotou de todos os lábios. – E como se faz isso? – quis saber o Adelino.

    – Fervem o leite nos caldeiros de cobre, temperam-no com sal e um cibo de unto, depenam bem os pássaros que caçaram nas esparrelas, limpam-nos e metem-nos no caldeiro junto com duas mãos de cuscuz. Logo que tudo estiver cozido, servem-no em malgas. Sabe que regala!

    Doutra vez, o Alípio mais os irmãos Nuno e Telmo foram buscar-me a casa num tórrido dia de Agosto. O meu pai andava em torna-jeira8, na malha do tio Baptista Vilaro e a minha mãe regava a cortinha com a água “do povo”.9 Eu sabia que não o devia fazer, porque estava terminantemente proibido de ir para o rio, mas cedi à tentação de os acompanhar sem dizer nada aos meus pais. O programa incluía banhos e pescaria logo com um calor daqueles e na companhia do Alípio! Quem podia resistir?

    O Alípio providenciara tudo o que era preciso: um galrito10 e um garfo. Não havia cana nem anzol nem minhocas ou sucedâneos. Calções de banho eram coisas de que nunca tínhamos ouvido falar. Entrámos na água “em pelotas”, dispostos a obedecer às instruções dadas pelo Alípio que, além de conhecedor, era também o mais velho, dois valores que o qualificavam na escala hierárquica logo a seguir aos nossos pais. O galrito, destinado aos escalos, barbos e outras espécies, não surtiu o efeito desejado. Quanto às trutas, o procedimento era outro e resultou em cheio. Caminhando no leito do rio, de águas límpidas e frias, com o menor ruído possível, acercávamo-nos de uma pedra de maiores dimensões e enfiávamos as mãos por baixo, de um lado e do outro, tacteando à procura da truta possivelmente ali refugiada. Logo que a topávamos, vinha o Alípio com o garfo e segurava-a, uma vez que é um peixe demasiado escorregadio.

    Repetimos a operação não sei quantas vezes até que os nossos estômagos adiantaram argumentos convincentes para encerrar o programa. Tínhamos apanhado quatro espécimes de bom porte. Levámo-los à tia Gracinda, mãe do Alípio, do Nuno e do Telmo que os fritou e no-los serviu. Souberam-nos “que nem carões de nozes”.11

    O pior veio depois. Apesar da companhia do Alípio, que assumiu a responsabilidade de me ter ido buscar, no regresso levei umas boas chineladas da mãe e, mais tarde, ouvi um sermão dos antigos a cargo do pai, irritado pelo meu procedimento de imprevisíveis consequências. Fico a dever-te essa, Alípio!

    1 Aquele que deixa as obrigações para andar na brincadeira com os amigos.

    2 Quem conduz os animais de trabalho e as suas crias para o pasto e toma conta deles.

    3 Tipo de cabana construída em pedra, no campo, para recolher os animais.

    4 Corruptela de “fazer a sesta” aplicada ao gado.

    5 Almocei. Nas aldeias do Norte do país a refeição de meio-dia era o jantar.

    6 Mata de carvalhos.

    7 O mesmo que: “e já é bem bom!”

    8 Troca de dias de trabalho entre famílias em regime comunitário.

    9 A água dita “do povo” é distribuída por dia(s) conforme as terras de regadio que as famílias possuem.

    10 Armadilha em rede e formato de saco que se colocava em pontos estratégicos do rio.

    11 Como se fossem nozes em miolo.

    Por: Nuno Afonso

     

     

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