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    Arquivo: Edição de 30-12-2005

    SECÇÃO: Crónicas


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    O morto que desafiou a autoridade

    Biritiba Mirim, cidade a poucas dezenas de quilómetros de S.Paulo, é um lugar onde apetece viver. Grande parte da população entrega-se à agricultura, particularmente ao cultivo e comercialização de hortaliça para a grande metrópole. E, como a terra é fecunda, tal actividade torna-se muito compensadora. Todavia, por essa razão, não mereceria honras noticiosas, apesar de incomum em país com tantos problemas económicos. Os Estados do sul têm, de um modo geral, nível de vida superior ao da média brasileira, uns bons pontos acima das demais regiões.

    Nesta urbe as pessoas são bastante saudáveis, pela excelente alimentação de que dispõem, onde predominam legumes e frutas, de tal sorte que a expectativa de vida é mais elevada do que em qualquer outro lugar. Esse facto, é certo, não cria nos habitantes a ilusão da imortalidade, apesar da insólita história que, recentemente, ali aconteceu: o prefeito local, talvez influenciado pela última obra de José Saramago, autor muito popular em terras brasileiras e/ou pel' O Bem Amado de Dias Gomes, mandou publicar um edital, proibindo as pessoas de morrer. Isso mesmo que o leitor duvida se teria compreendido bem. A decisão causou natural espanto e alimentou não só as conversas entre os munícipes como igualmente a verve humorística que é traço distintivo do povo brasileiro. Surgiram de pronto inúmeras anedotas glosando o tema, o que provocou a hilariedade geral. Como a boa disposição favorece a saúde e não há melhor remédio para qualquer doença, seja do foro físico ou do psicológico, do que umas boas gargalhadas, a medicina deu o seu apoio tácito. Os ventos sopravam a favor do edil.

    Por absoluta evidência, todos gostariam de lhe proporcionar tão grande alegria, exceptuando, naturalmente, a dona da única agência funerária da cidade. Essa, que já via o negócio mal parado antes do edital – seis ou sete funerais por ano –, ficou em muito "maus lençóis" após a ordem do prefeito. Inteligente e calejada no negócio, que muitos vêem como macabro, em fim de contas igual a tantos outros, não protestou nem fez escarcéu. Ficou à espera de saber se a natureza e a política se entenderiam, crendo firmemente na impossibilidade de tal vir a ocorrer.

    Foto PREFEITURA MUNICIPAL BIRITIBA MIRIM
    Foto PREFEITURA MUNICIPAL BIRITIBA MIRIM
    Recuemos um pouco para explicar a conspícua determinação da autoridade. Homem prestigiado pelo seu empenho na causa pública, "seu" Agenor de Souza foi informado pelos respectivos assessores de que o cemitério da cidade assentava num vasto lençol de água, em risco, pois, de vir a afundar-se e origem iminente de grave prejuízo para a saúde da comunidade. Analisada a questão, concluiu-se que não poderia haver mais enterros naquele espaço nem sobrava a hipótese de alargamento a terrenos contíguos. A transferência dos corpos ali sepultados para um local adequado e a deposição de novos despojos requeria estudos, projecto, aprovação pela Câmara e outros trâmites imprescindíveis. Por mais celeridade que imprimissem ao processo, transcorreriam alguns dias de interregno em que um qualquer passamento constituiria enorme dor de cabeça para os representantes do povo e o seu líder máximo. Vai daí, julgou não existir alternativa à interdição pura e simples de morrer. O mais fácil foi lavrar os termos do edital.

    Entre o prático e o irónico, D. Abigail de Almeida Prestes, a empresária acima referida, declarou possuir, na continuidade da funerária, um pedaço de terreno batido que não se importaria de negociar com o prefeito em tal situação de emergência. Fiado no bom estado de saúde dos seus concidadãos, não consta que o autarca tivesse dado resposta, passando em claro a oferta. Trabalhos de galé tiveram médicos e outros agentes de saúde muito requisitados, dia e noite, com razão ou sem ela, ao mínimo sinal de perturbação orgânica. Sacerdotes, pastores e outros chefes religiosos prestaram apoio a um sem-número de fiéis, subitamente lembrados da morte e receosos de virem a ser sepultados fora de um campo santo. Enquanto isso, nos cafés e bares, entre rodadas de chope e tragos de cachaça, muitos ignoravam receios e divertiam-se contando histórias de conhecidos que faziam valer a imaginação em procedimentos ridículos para evitar o risco de morrer.

    Os primeiros dias foram passados entre o medo e a risota e, como nada sucedia, foram-se convencendo de que talvez o titular da prefeitura tivesse acordado algum protocolo com a divindade ou com a própria mulher da gadanha no sentido de interromper o normal término da vida. Num cenário diferente acusá-lo-iam de bruxaria mas ali ninguém chegou a tais extremos. Aos poucos a vida retomou o seu curso e, apenas de longe em longe, alguém se lembrava de elogiar o prefeito pela sua clarividência. Se outro mérito não tivesse, era impossível regatear-lhe que as pessoas eram, agora, mais cuidadosas quanto à própria saúde, conduziam com precaução, fugiam de viagens longas, tratavam ainda com maior desvelo os seus doentes.

    Mas "seu" Romeu Maria, de oitenta e seis anos cansados, encontrava-se de cama havia semanas e viu chegada a sua hora de partir, de nada valendo a dedicação da esposa e das filhas que tudo fizeram para o impedir. Quem não gostou da partida foi "seu" Agenor, porém defunto escapa à alçada da lei e ao julgamento dos que ficam.

    Por: Nuno Afonso

     

     

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