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    Arquivo: Edição de 20-12-2005

    SECÇÃO: Crónicas


    foto

    Afectividade

    Junto àquela casa, que fazia gaveto entre duas ruas centrais, era tão assídua a sua presença quanto a minha passagem. Lembro-me de ter raciocinado, ao primeiro contacto, que não pertenceria à família ali residente, visto que os recipientes da água e da comida se encontravam no exterior junto à parede da habitação. O que lhe punham na gamela não satisfazia, com certeza, as suas precisões alimentares, pois estava sempre vazia e o bicho tinha um ar de abandono que doía: pêlo eriçado e sujo, esbelteza de galgo, raça que andava longe de ter contribuído para a mistura de genes que aparentava, e um humor azedo que, por norma, traduz fome ou carência afectiva.

    Ilustração RUI LAIGINHA
    Ilustração RUI LAIGINHA
    Tal não impedia que se julgasse obrigado a vigiar a residência e a proteger os seus habitantes. Fortes latidos advertiam o transeunte desprevenido de que era mais sensato passar ao largo. Ignorar o aviso e seguir a rota previamente traçada, tomando como bom o dito popular segundo o qual “cão que ladra não morde” podia envolver algum risco; alterar o rumo talvez fosse a opção mais ajuizada, porque o animal não faria comentários depreciativos quanto à pusilanimidade reflectida ou talvez os fizesse em linguagem canina, afinal, impossível de verter no código verbal mais usado pelo ser humano.

    Aquele troço fazia parte do meu itinerário de todos os dias. Habituado a situações parecidas, avancei resoluto, opção que ele deve ter entendido como grave ofensa à dignidade do seu ofício. Correu no meu encalço a ladrar furiosamente e a rosnar tão perto das minhas canelas que sentia o calor do seu bafo a eriçar-me os pêlos das pernas. Pareceu-me muito verdadeiro na intenção, a ponto de suspender a caminhada. Voltei-me e olhei-o de frente. Lembrei-me de que, na minha aldeia, dizem que os cães ladram a quem não tem dinheiro. Se eu lhe mostrasse uma nota das mais pequenas (costumo andar com muito pouco dinheiro) ou até uma moeda, será que parava de ladrar, metia o rabo entre as pernas como que a pedir desculpa e dava meia volta? Estive tentado a fazê-lo, só por graça, mas achei que significaria assumir crendices, superstições ou actos de cariz mágico em que o nosso povo é mestre, e desisti. Também a fera tinha parado, mas mantinha a postura agressiva talvez com o duplo objectivo de fundamentar a atitude tomada e garantir que era sua a jurisdição naquela área. Retomei o andamento, seguindo, “pelo rabo do olho”, as suas reacções. Continuou a perseguir-me e só parou ao atingir o limite entre a casa dos seus protectores e a seguinte. Estacou subitamente como se uma parede invisível lhe tolhesse a marcha, mas não deixou de me avisar que não repetisse a gracinha.

    NOVA

    ESTRATÉGIA

    No dia seguinte, logo que o faro lhe denunciou a minha aproximação, levantou-se e proclamou aos quatro ventos que estavam abertas as hostilidades. Os latidos do cão funcionaram como as célebres pancadas de Molière e as cortinas de algumas janelas oscilaram num discretíssimo estremecimento, cada qual funcionando como pano de cena individual. O espectáculo ia começar e ninguém queria perder a oportunidade de assistir ao ritual do sacrifício, tema que não deixariam de explanar à mesa do café acrescentando, obviamente, os pontos que mais lhes conviesse. Entendi que devia fazer uma meia concessão, desci do passeio e prossegui rua adiante. O animal não parou de ladrar com toda a gana, no entanto e para minha surpresa, manteve-se no estreito limite do passeio. Acompanhou-me até ao ponto em que, na véspera, nos tínhamos separado. Julguei aperceber-me de que havia nesses latidos uma imensa raiva por ver os seus intentos contrariados tal como deve ter existido entre os ocultos assistentes, frustrados na sua sede de espectáculo.

    E se “às três sai o cão do moinho”, no dizer dos meus conterrâneos, ao terceiro dia escolhi nova estratégia. Reflecti que a manter o traçado habitual, seria aconselhável fazê-lo sem conflitualidade. Para tanto, era imperioso neutralizar aquele adversário, ganhar a sua confiança, torná-lo cooperante. Lembrei-me do pacto estabelecido entre S. Francisco de Assis e o Lobo de Gubbio e, conquanto eu não seja santo nem tenha os dons de persuasão do Poverelo, nada custava tentar, tanto mais que este cão deveria ser bem menos feroz do que o “irmão lobo” da história. Mais do que discursos, importava usar o afecto, cativá-lo por meio de actos carinhosos e não havia melhor do que começar por uma oferta. A uma distância prudente mostrei-lhe a comida que trouxera para lhe dar. Aproximou-se e deixou de latir. Deixei que farejasse e comesse um pouco, depois despejei o invólucro na gamela vazia. Passei-lhe a mão na cabeça e no pêlo hirsuto do lombo, fiz-lhe festas no pescoço e na barriga enquanto ele comia sofregamente o que lhe dera. O bicho gania de satisfação. Estavam seladas as pazes, tive a certeza de que, doravante, poderia transitar sem receio porque ganhara um novo amigo.

    Agora, de quando em quando, desaparece e fica ausente por uns dias. Vai “fazer pela vida”, quem sabe se procurar uma situação mais estável, se ganhar outras amizades. Depois regressa ao poiso antigo, fiel à família original, jamais esquecido de quem o acarinhou. Quando passo e não o encontro já tenho saudades.

    Por: Nuno Afonso

     

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