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    Arquivo: Edição de 10-12-2005

    SECÇÃO: Crónicas


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    D. ERMESENDA, A DEVOTA (10)

    O castigo divino

    Ermesenda, tremia quando ouvia o toque da trombeta do adaíl, os sapatões ferrados do seu pai, de seus tios, primos, solarengos e cavaleiros a apearem-se dos ginetes nervosos que relinchavam e batiam com os cascos nas lajes do terreiro, enquanto escudeiros e abegãos se esforçavam por os dominar e segurar. Seu pai o terrível Gonçalo Trastemires, a sacar os guantes ferrados, o casco com naso, a atirar para trás o capelo de malha escamada enquanto os lebreus, mastins e alões corriam para ele e o rodeavam como para lhe darem as boas vindas e lamberem-lhe as possantes mãos. E depois, lá em cima, na sala nobre, a abraçar a sua mãe, D. Unisco Sisnandes, a sua avó Dórdia e a responder ao seu irmão Mendo, já com 14 anos, que o enchia de perguntas, enquanto sacava o cinturão com a espada goda de folha larga, a adaga, o corselete d’ anta e depois se sentava e tirava os coxotes, as escarpas e desafivelava as grevas.

    Ilustração RUI LAIGINHA
    Ilustração RUI LAIGINHA
    A cena daquele rijo troço de cavaleiros chapeados de ferro com as lanças, o pendão e caldeira dos da Maia, aprumado sobre os coxotes, no regresso de Montemor, os brados dos almoçadens nas suas ordenanças, besteiros, archeiros, fundibulários e peonagem, de todos aqueles homens de armas a bater ferro, com suas terríveis armas, achas, manguais, clavas godas de bola com puas, o tinir das espora, o ranger dos lorigais e cotas de malha, as sapatas ferradas, o relinchar dos murzelos bravos e dos garranos nas estrebarias, tudo isto a fazia tremer.

    É certo que todo aquele atropelo, para ela, ainda com 8 anos, era um pesadelo mas para Gontrode, a irmã mais velha já com 12 anos era empolgante e olhava emocionada e corria para o pai, com o irmão Mendo. A pequena Toda de 5 anos, ficava feliz e queria saltar para os braços do pai, logo que o avistava. Gontinha, com 10 anos, examinava os garbosos cavaleiros que chegavam empoeirados, com os escudos e broqueis amolgados e alguns com as vistosas sobrevestes de pano rasgadas, sobre os lorigais e cotas de malha. O primo Toderedo “Cid”, tal como seu pai o velho mas terrível Fromarico “Cid”, forte e maciço como um touro, quase sem pescoço, com as faces sanguíneas avermelhadas e sardentas, as barbas fouveiras (ruivas) que saiam do capelo de aço escamado, mestre no manejo do mangual e da clava de bola com puas que, quando acertava em cheio, era cavaleiro abatido da sela ou de escudo furado ou então peão estatelado a ser esmagado debaixo dos cascos do seu ginete bravo. Até o velho e fiel Piniolo, naquele tempo ainda jovem, com a sua acha de ferro afiada que cortava braços e pernas e abria peitos mal protegidos. E o jovem Honorico Gonçalves, o solarengo de Neiva, elegante de barba loura que viria, mais tarde, a casar com Gontrode e que aprumava vaidoso a lança de faia, com o grifo bicéfalo estendido pintado no escudo e na sobreveste de brial azul que cobria a cota de malha.

    Estarrecia-se deprimida com aquele desfile, de guerreiros de arneses abolados, lorigais rompidos que mostravam horríveis mas honradas feridas da rija liça. Depois aquela bestaria que vinha atrás, conduzida por abegãos e servos, com azémolas e mulas de carga carregadas de ricos despojos mouriscos, odres nos alforges de trebolha e com os estropeados e feridos graves que gemiam em toscas andas improvisadas com estacas e ramos de árvores. Os mouros cativos, a ferros, cercados de peões com ascumas, arrastando os grilhões, que iriam trabalhar a terra nas quintanas, abegouras e Reguengos, juntamente com os servos da gleba se não tivessem outro préstimo.

    A VINGANÇA

    Os mouros cativos, pela promessa feita, pelo pai, à sua mãe Unisco e à avó Dórdia, após a chegada, seriam libertados dos grilhões, alimentados e recolhidos, num compartimento ao lado da caserna dos servos. Eram bons trabalhadores, bastava deixá-los fazer as rezas deles, prostrados no chão sobre as almucelas (tapete para rezar), virados para Meca onde jazia o seu Profeta, como lhe tinha contado o abade Tudeíldo, embora muitos se convertessem à fé de Cristo, Nosso Senhor, para sua salvação.

    O avô Trastemiro teve ao seu serviço, um mouro sírio bastante erudito com conhecimentos de medicina, que até curou a avó Dórdia duma grave maleita, segundo lhe contou seu pai e que acabou por seguir com as hostes sacrílegas de Almançor que, com a ajuda de renegados cristãos1, arrasou templos e cenóbios a caminho de Santiago que saqueou e destruiu a Basílica do Apóstolo, que o rei Afonso III, já há dois séculos, tinha mandado edificar, levando os seus grandes carrilhões, como trofeu, para Córdoba onde foram fundidos. Grande sacrilégio e afronta fez o muladi renegado, à Cristandade!

    Tamanha afronta nunca a Cristandade tinha sofrido mas o castigo divino não tardou a cair sobre o sacrílego usurpador, perecendo cinco anos depois, em 1002, com uma terrível e incurável doença de ossos que o fez sofrer as penas do inferno, antes do seu triste fim. O seu filho, Abd al Malik – Al Muzaffar, que quis continuar as atrocidades do pai, assaltando e saqueando Leão, também não escapou à espada afiada duma misteriosa vingança, seis anos depois, em 1008. E o próprio Califado de Córdoba, até aí rico e magnificente, se desmoronou, dissolvendo-se como os sinos fundidos da Basílica profanada do Apóstolo Santiago. O império Al Andalus, dividiu-se, esmigalhou-se em pequenas taifas à mercê dos cavaleiros da Cruz, cujo poder se expandiu rapidamente para o Gharbe mourisco, subjugando e avassalando muitos reis mouros, agora diminuídos e fragilizados. O cerco ao Islão, consumou-se e a sua decadência começou.

    D. Arnaldo de Baião e seu sogro D. Gosendo Ataúfes, conquistaram Baião, Soalhães, Mesão Frio até às Terras de Panoias. O conde Mendo Lucides (Luz) conquistou as Terras de Santa Maria e saqueou Montemayor (Montemor). Seu pai, Gonçalo Trastemires, reconquistou Montemor e algumas terras em Santa Maria e Lafões. Os de Ribadouro, Egas Moniz, o Gasco e seus filhos Ermígio, Monio, Gomo e Pedro Viegas, tomaram Paiva, Arouca, Alvarenga e todo o ribadouro até Lamego. O rei Fernando Magno voltou a conquistar Lamego, Viseu, Lafões, Seia, Coimbra, Soure e Leiria, mandando cortar as mãos ao arqueiro mouro que frechou o seu sogro, o rei Afonso V de Leão, no cerco a Viseu. O seu filho Afonso VI, o Imperador, tomou Toledo, Cória, e todo o território até ao Tejo e Ebro e avassalou os reis mouros de Granada, de Sevilha e o de Badajoz que lhe entregou Santarém que seu sobrinho, Soeiro Mendes, governou e ainda Lisboa e Sintra. D. Rodrigo Diaz de Bivar, El Cid, o Campeador, apoderou-se de toda a região de Valência.

    A afronta a Santiago e à Cristandade foi vingada. O escarmento foi rijo e, durante muitos anos, a Cruz dominou o Crescente dourado, na antiga Hispânia visigótica.

    Deus é Grande!

    Allah Akbar!

    1 Consta que os condes Froila e Veila, filhos do falecido conde Gonçalo Moniz, de Coimbra, associaram-se a Almançor nos saques e ataques a Portugale e Galiza, inclusive na destruição e saque de Santiago de Compostela, em 997.

    Por: Reinaldo Beça

     

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