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    Arquivo: Edição de 10-12-2005

    SECÇÃO: Crónicas


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    O reino maravilhoso

    A primeira imagem que os meus olhos captaram, ao deparar com aquela fiada de casas baixas e escuras, correndo ao longo de uma rua de terra batida semeada de pedras, estreita e sinuosa, contrastava violentamente com a visão idílica que os meus pais me haviam incutido sobre o seu maravilhoso torrão natal. Não que pretendessem enganar-me. A culpa era do prisma através do qual a visualizavam na sua situação de emigrantes. E ali estava eu do alto dos meus quatro anos e meio perante a realidade nua e crua a comentar em sotaque de brasuca:

    - Ih, mamãe, qui Portugau é esse?

    Se o conceito mais comum acerca da beleza reside tão somente no caleidoscópio dos jardins bem cuidados, nas paisagens luxuriantes de verde ou nas obras grandiosas devidas à arte e ao engenho humanos, tudo o mais que a ele não corresponda é desprezível ou banal. Esquece-se a harmonia geral a grandiosidade dos espaços e a originalidade de certos pormenores que podem impressionar os nossos sentidos ao ponto de nos deixarem cativos de emoção. A pedra no meio do caminho pode ser um obstáculo ao nosso percurso mas pode igualmente ser um elemento de grande valor estético e simbólico.

    Ilustração RUI LAIGINHA
    Ilustração RUI LAIGINHA
    Para alguns, Trás-os-Montes não será motivo de encantamento; para outros é inconfundível, de uma riqueza paisagística única que esmaga e exalta, que surpreende e extasia, que choca e enamora. É o Reino Maravilhoso de que falava Miguel Torga e não pensem que o via só com olhos de poeta, afinal o homem ou a mulher que tem a sensibilidade à flor da pele, antes como um ser comum dotado, certamente, da capacidade de reagir face a tudo aquilo que o cerca. Experimente o leitor deslocar--se a essa região, palmilhar os seus caminhos, deixar-se impregnar pelas mensagens que a natureza lhe faz chegar, subir ao alto duma serra e espraiar os olhos até onde puderem alcançar e terá uma sensação de liberdade sem limites, aqui, a imensidão de pedras cercadas de vegetação rasteira onde pontuam o rosmaninho, o alecrim e uma enorme variedade de outras plantas olorosas; mais além, os vales abundantemente arborizados; ainda mais longe, montes que parecem suceder-se, assimétricos mas harmoniosos. De quando em vez, surpreendem-nos formações rochosas caprichosamente moldadas pela erosão e ameaçadoramente inclinadas sobre rios que, em estios prolongados, se reduzem a um fio de água e, na maioria dos invernos, cachoam com fragor no fundo das vertentes. Quem viajasse na extinta linha do Tua ficava perplexo com tanta beleza, “o belo horrível” a que se referia um viajante famoso.

    Trás-os-Montes foi sistematicamente esquecido pelos dirigentes e pelos políticos influentes deste país até quando eram dali naturais. O patriotismo do transmontano equivale ao seu apego telúrico: durante séculos esteve bem mais próximo de Espanha que do resto deste país a que chamamos nosso, atravessava a fronteira por bem ou por mal para fazer compras, para passear ou para ir ao médico. Por largo tempo o intercâmbio entre as gentes do Norte de Portugal e da Galiza produziu valores culturais de elevada expressão, na língua, na literatura, nos costumes e nos hábitos alimentares entre outros. Depois que a televisão chegou, o nordeste transmontano foi rapidamente coberto pelos canais em castelhano e só muito mais tarde e a conta-gotas os brigantinos puderam ter acesso às cadeias televisivas nacionais. O caminho de ferro chegou tardiamente a Bragança por acção do conselheiro Abílio Beça e expirou, infelizmente sem grandes convulsões, no consulado de Cavaco Silva, por motivo economicista. Teria sido mais vantajoso para as nossas populações unirem-se à Galiza e a Espanha do que manterem-se unidas ao resto do país. No entanto, embora, “à boca pequena” se aduzisse a hipótese, jamais foi encarada como via plausível face ao arreigado espírito patriótico da nossa gente. Veja-se o exemplo de Rio d’Onor, aldeia separada em duas partes, uma portuguesa, outra espanhola, apenas um marco de pedra a indicar a linha de separação, onde espanhóis e portugueses estão cá e lá, convivem, consorciam-se, mas cada território mantém orgulhosamente o seu carácter distintivo nacional. Os portugueses falam um dialecto enquadrado na nossa língua que partilham com os habitantes de outra aldeia vizinha chamada Guadramil.

    O transmontano é um lutador, luta com a natureza avara, luta contra a pobreza, luta contra a injustiça e a indiferença e, todavia, não há ninguém mais pacífico, ordeiro, generoso e honesto do que ele. Sai da sua terra mas não a esquece e, sempre que pode a ela regressa, quantas vezes para morrer. Olha para ela como para o rosto da sua própria mãe. Ama-a com todas as suas energias.

    Há muito sei a resposta que, em criança, pedi à minha mãe. Gosto da cidade e do país onde nasci, estudei, me formei e residi por vários anos. Gosto desta cidade de Ermesinde em que vivo e em que trabalhei durante uma fatia generosa da minha vida. Creio que um homem pode ter outros amores, mas há um que ocupa o lugar de honra do seu coração. E, no meu caso, esse lugar pertence a uma aldeia pequenina, aninhada nas faldas da serra de Nogueira onde passei a minha infância e parte da juventude e onde jazem os meus pais e os meus avós: Alimonde.

    Por: Nuno Afonso

     

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