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    Arquivo: Edição de 30-10-2005

    SECÇÃO: Crónicas


    O destino da utopia

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    Haverá um céu e um inferno para a utopia ? Tal como o ser humano, a utopia nasce, desenvolve--se e morre ou sobrevive por intermediação de sucedâneos. A utopia nasceu com o homem, tem-no acompanhado ao longo de toda a sua existência e é uma das constantes cíclicas da sua história. É filha do desejo e da imaginação, do sonho e da crença, do inconformismo e da revolta. Renova-se em épocas de crise ou em épocas de crítica. Em épocas de crise, a imaginação inflama-se e tende a evadir-se para um passado venturoso ou para um futuro que se antolha apenas possível, mas responde à necessidade de libertação; em época de crítica porque «as instituições pesam e a estabilidade cansa», como diz M. Antunes na Verbo-Enciclopédia Luso-Brasileira de Cultura, em que a insatisfação pelas contradições sociais e pelas carências e sofrimento que elas provocam justificam o surgimento de algo que responda à humana aspiração de infinito.

    Não existe uma definição consensual para a utopia. Para alguns. como o romancista austríaco Robert Musil, «é uma possibilidade que pode efectivar-se no momento em que forem removidas as circunstâncias provisórias que obstam à sua realização». Devemos pois entender que o autor quis dizer circunstâncias ao alcance da acção transformadora dos homens e, assim, quase se confunde com o que costumamos designar por "sonho".

    O CONCEITO

    DE UTOPIA

    Thomas More, ao publicar o seu livro "Utopia", que se tornou a obra mais importante de todo o movimento humanista em Inglaterra, suscitou acesa polémica entre os que consideravam a utopia não apenas possível mas com grande probabilidade de vir a concretizar-se e aqueles que a entendiam de muito difícil efectivação. O termo generalizou-se a partir do século XVI e chegou aos nossos dias imbuído de pessimismo, chegando mesmo a receber forte carga pejorativa. Dizer a alguém que o seu projecto é utópico corresponde a pouco mais do que uma condenação.

    Tal não obstou a que a utopia tenha sido companheira fiel do homem ao longo da sua existência. Vemo--lo, por exemplo, na Literatura, através dos chamados contos maravilhosos que reflectem o veemente desejo de ascensão social ao apresentar-nos a jovem humilde que aspira casar com um príncipe ou o aventureiro inteligente e/ou sagaz que encontra artes para que o rei lhe conceda a mão da sua linda filha. Surgidos em época remota, numa sociedade fortemente estratificada, ninguém de bom senso poderia, então, imaginar que as condições existentes poderiam a curto ou médio prazo modificar-se de molde a permitir que um tal desejo se realizasse. Decorreram séculos, milénios, até que os obstáculos fossem removidos e as situações comummente aceites.

    SOCIALISTAS

    UTÓPICOS

    O falanstério de Fourier.
    O falanstério de Fourier.
    Porventura a mais sonante das utopias foi a que compreendeu a acção desenvolvida por um conjunto de homens notáveis na primeira metade do século XIX, movidos pelo comum desejo de alcançarem uma justa repartição dos bens materiais disponíveis, velha aspiração humana desde tempos não-datados. Chamaram-lhes Socialistas Utópicos. Sucessores dos Iluministas dos Enciclopedistas, de Voltaire, Rousseau e Montesquieu, que pretenderam abolir o passado sob todas as suas formas e por todos os meios, demolir as grandes ideias e as grandes instituições da era clássica com o objectivo de erigirem um homem novo e uma nova sociedade, os socialistas utópicos não teorizaram apenas, mas tentaram criar modelos de organização económica e social capazes de atingir aqueles objectivos. Robert Owen, Charles Fourier e Saint-Simon foram os grandes paladinos desses ideais de justiça, infelizmente destinados ao insucesso pela oposição tenaz de interesses constituídos e de instituições religiosas e políticas que se sentiram ameaçadas. O Socialismo Científico de Marx e Engels, que lhes sucedeu, logrou aplicação prática na antiga União Soviética e países do Leste europeu assim como em Cuba e na Coreia do Norte, mas conheceu o destino que todos lembram. Boa parte da Humanidade acredita que um dia será possível alcançar uma sociedade mais justa e igualitária. A utopia segue o seu caminho, não obstante os percalços sofridos e os obstáculos que, de momento, parecem intransponíveis.

    Nos anos sessenta, época de crise e de crítica, em que tudo parecia atingível, conheceu alguma voga o movimento que preconizava “a sociedade das 20 000 horas (de trabalho)”. Previa-se que, face aos avanços técnico-científicos, num horizonte temporal não muito dilatado, ninguém trabalharia mais do que aquele número de horas ao longo da vida. Com a generosidade e o optimismo que caracterizaram esses anos, acreditou-se que tais avanços do conhecimento redundariam em benefício do ser humano em geral e do trabalhador em particular. Lamentavelmente, a evolução não caminhou no sentido ambicionado e aquilo a que assistimos actualmente parece condenar às penas eternas esta utopia. Valer-nos-á, no entanto, a persistência de que o homem tem dado provas para que outras tenham o merecido prémio. Devemos registar, apesar de tudo, as grandes conquistas que já foram obtidas.

    Por: Nuno Afonso

     

     

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