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    Arquivo: Edição de 30-09-2005

    SECÇÃO: Crónicas


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    Nada se perde, tudo se transforma

    Tirassem ao lavrador o cacho de centeio, e a pinga de vinho e julgar-se-ia incapaz de sobreviver, mareante sem bússola, frade sem escudela e sem rosário. Esse era o seu pão, a sua mantença, o seu deleite. Ao mata-bicho, ao almoço, à merenda ou ao jantar, o centeio era a sua dieta, com acompanhamento ou sem ele. Quantas vezes levava no bolso da jaqueta apenas uma côdea para enganar o estômago enquanto lavrava a embelga ou carregava de lenha o carro de bois? Maior consolação não poderia ter do que cortar um farto carolo, uma rodaxa de salpicão ou cibo de presunto, sentar-se ao cimo da escaleira e, de navalhinha na mão, i-los cortando em pequenos bocados que metia à boca e mastigava devagar, salivando, numa volúpia do paladar. A intervalos, levar aos lábios a cabaça, ou o pipo a evocar a sucção do leite materno, a consolar-se com a frescura e o gosto que tinha um pouquinho de tudo o que de bom constituía a sua vida.

    O ciclo do centeio identificava-se com o ciclo da própria vida. Mal terminava a colheita, em Agosto, e já se decruavam as terras, que tinham ficado em pousio, tendo em vista a produção do ano seguinte. Pouco tempo depois procedia-se à segunda lavra, a vima, esfarelando a terra, a prepará-la para a maternidade. Finalmente entrava de novo em acção o arado ou a charrua para a adubação e a sementeira. Esta fase prolongava-se desde os últimos achaques do Verão até aos primeiros ralhos do Inverno ainda ele vinha ao fundo da rua, nunca esquecendo as sábias recomendações do Seringador quanto às fases da lua e outras precauções a ter em conta. Nesse ínterim havia que levar o cereal recolhido a um dos moinhos da aldeia, transformá-lo em farinha e com ela ir cozendo os belos pães que davam ao lavrador o tranquilo conforto do presente e a garantia do próximo futuro.

    Quanto ao pão lançado à terra, era preciso acompanhar de perto o seu desenvolvimento durante o Inverno, mais adiante mondar, reforçar o adubo se fosse necessário, e, à medida que o Verão se aproximasse, pensar na colheita e, de novo, rezar para que não sobreviesse geada tardia ou inoportuna trovoada que arruinassem todos os planos até então acalentados.

    Ilustração RUI LAGINHA
    Ilustração RUI LAGINHA
    Um ano assim há muito não acontecera por aquelas bandas. O frio viera quando tinha que vir, nenhum contratempo impedira a terra de se derramar em fruto. Em Junho e em Julho fizeram-se as malhas e as acarrejas, em Agosto as debulhadoras entraram em acção. O Amadeu calculara que iria ter boa colheita mas, contrariamente ao que por hábito sucede, os seus juízos pecaram por defeito. Encheu as tulhas até não haver espaço para um cabelo e viu-se com um grave problema entre mãos: onde depositar o centeio excedente?

    Matutou, matutou, e só um recurso lhe pareceu viável: despejar os sacos no lagar enquanto não encontrasse melhor solução. Até às vindimas podia ser que... E não pensou mais no caso, nem sequer fez reparo de que havia um janeluco, espécie de respiradouro da adega, na parede onde encostava o lagar, a cerca de um metro e meio deste, sem vidro ou qualquer outro resguardo.

    Com o tombar das primeiras folhas, caíram uns borrifos de chuva, caprichos dum Outono mal-disposto por saber que grande número de pessoas não lhe envia flores nem lhe tece loas depois de um tempo de sol e descontracção.

    O Amadeu ia muitas vezes à adega sem que nada lhe despertasse suspeita. Se espreitou para dentro do lagar, com certeza não deu por qualquer alteração. No entanto, passados mais uns dias, apercebeu-se de um cheiro a mofo que o deixou intrigado. Deu voltas à adega, procurando a causa do estranho odor, activado por uma pituitária de perdigueiro que o conduziu ao lagar. Servindo-se de uma pequena escada de madeira, alcançou o cimo da parede. Os olhos confirmaram de imediato o que o olfacto denunciara. Felizmente, a água atingira só um pequeno espaço mas conseguira penetrar até ao fundo como pôde constatar ao enfiar a mão no centeio intumescido. Dos grãos fundeiros espreitavam já uns grelinhos maliciosos.

    Na aldeia nada acontece em segredo, bem parece que um génio zombeteiro vai cochichando as notícias de ouvido em ouvido ou que a vida comunitária é de tal modo entretecida e previsível que a intuição das gentes chega a dar por adquirido algo que ainda não aconteceu.

    Chegou-se a ele o Carlos e, em jeito conspirativo, foi dizendo:

    - Olha, pá, eu sei que andas apoquentado por causa daquela chatice do centeio. E tens razão, qualquer um, no teu lugar, também andaria. Eu sou teu amigo e estou aqui p’ra t’ajudar. Mas só vejo uma forma de saíres do enrasco. Já ouviste falar de uísque?

    - Não, - respondeu o outro - que raio vem a ser isso?

    - É uma bebida que fazem no estrangeiro como nós fazemos a aguardente só que, em lugar de ser com o bagaço das uvas, é com cereal. Eu bebi-o uma vez no casamento do meu primo Chico, em Lisboa, e digo-te que é de trás da orelha. Vamos fazer assim: carregamos o alambique no carro, mais o centeio molhado e uns valentes rachos da lenha que tens no sequeiro e levamos tudo p’ra um sítio escondido, olha, pode ser p’ró cabanal do Lázaro que é fora do povo. O resto já sabes, é como se estivéssemos a fazer a nossa bagaceira. Mas temos que guardar segredo porque fabricar uísque é proibido.

    O Amadeu estava disposto a tudo para evitar o prejuízo e, mais ainda para sair honrosamente da embaraçosa situação. Combinaram tudo para a noite do sábado a seguir porque no domingo podiam descansar mais um bocado. Pela madrugada apuseram as vacas ao carro e seguiram, desviando-se ao máximo da povoação. Já no local, dispuseram tudo como tinham previsto e aguardaram que o uísque começasse a aparecer. Conversaram animadamente, recordaram episódios da infância, brincadeiras da juventude, namoros antigos. Quando, finalmente, repararam que o líquido começara a correr, alvoroçaram-se. O Amadeu quis ser o primeiro: pegou no copo e recolheu umas gotas que levou à boca e logo cuspiu:

    - Ra’is part’ó diabo! Qual uísque, qual nada, é só água. - constatou desanimado, atirando para longe o que restava no copo - andaste a gozar comigo.

    - Vá, não digas disparates. Tudo o que te contei sobre a fabricação do uísque é verdade. Vamos esperar mais um pouco, pode ser que, depois da água, comece a aparecer o uísque. - disse o Carlos em tom apaziguador.

    Contrafeito, o Amadeu anuiu. Continuava desconfiado quanto à boa fé do outro. A conversa perdera a vivacidade, falavam por falar só para entreterem o tempo. A espaços um deles estendia o braço, provava e abanava a cabeça. As horas iam passando e os estômagos refilavam.

    - Estou cá com uma larica! - adiantou o Amadeu a quem a fome ia amortecendo o desencanto.

    - Espera! Lembrei-me agora de que a minha mulher arranjou dois frangos para o almoço de domingo. Vou por um deles, assamo-lo nas brasas e bebemos uns copos do meu tinto d’à Quebrada. - ofereceu o Carlos a tentar compor a situação.

    Dali a pouco, os dois banqueteavam-se ao calor dormente das últimas brasas mas, sob o efeito do briol, a temperatura da conversa voltava a subir, a ponto de quase dissipar a angústia que vinha escurecendo a alma do Amadeu. E foi com estas palavras que se despediu do outro:

    - Sabes, ó Carlos, li no Seringador umas palavras que me vieram agora ao pensamento: “Nada se perde, tudo se transforma”. As vacas e os porcos não comem o pão com gosto a bolor, mas vou dizer à patroa que o dê às pitas e aos parrecos que lá temos. Eles comem tudo o que lhes vem ao bico. Vão ficar mais gordos, as fêmeas põem mais ovos e teremos mais frangos à mesa. Se calhar, quem inventou aquilo tinha carradas de razão.

    Por: Nuno Afonso

     

     

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