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    Arquivo: Edição de 15-09-2005

    SECÇÃO: Crónicas


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    Por falar de amor

    Bem-aventurados os puros de coração porque verão a Deus.

    Como as histórias de Natal, sempre repetidas e sempre encantadoras, assim as bem-aventuranças, que muitos já tinham ouvido dezenas de vezes, despertaram o interesse do povo que seguia com toda a atenção a homilia do seu pároco, filho da terra, e possuidor de um raro dom para comunicar. Homem culto, professor de Português anos a fio em diversas instituições de ensino, utilizava com mestria inflexões de voz adequadas ao género de discurso e ao público a quem era dirigido, em frases simples ao gosto popular e, simultaneamente, densas no conteúdo, setas apontadas ao coração de cada ouvinte.

    Jamais se ouvira um silêncio tão agradavelmente preenchido pelas emoções que perpassavam de coração a coração, num frémito semelhante ao que devem ter sentido aqueles que, pela vez primeira, escutaram da boca do Mestre esse maravilhoso texto do Novo Testamento, talvez a mais bela manifestação da palavra em toda a existência humana, afirmada por grandes figuras como Gandhi, o hindu apóstolo da não-violência.

    Ilustração RUI LAIGINHA
    Ilustração RUI LAIGINHA
    Aqueles espíritos rudes compreenderam então algo que antes não passara de bonitas palavras, a extensão do fundamental Mandamento do Amor e não deixaram de reparar no tom, a espaços repassado de comoção, que o celebrante empregara para lhes transmitir o significado da pregação de Jesus. Gente sofredora, quantas vezes vítima de prepotências, injustiças, maldades de toda a sorte, os horizontes toldados pela escuridão da pobreza, do analfabetismo, da doença e de outros sofrimentos, era especialmente receptiva à promessa de um Reino onde estivessem a salvo do Mal. De um modo ou de outro, às vezes de vários, aqueles homens e aquelas mulheres possuíam um vasto rol de dores, mais difíceis de suportar as do foro espiritual do que as da carne, com certeza.

    O senhor padre Guilherme tivera a sua dose: a perda de um irmão, ainda criança, vítima de meningite e a deficiência mental severa de outro que lograra sobreviver à mesma doença mas com grau acentuado de limitações, além daqueles desgostos inerentes à vida de todos os seres humanos. O irmão sobrevivo era um espinho cravado no seu coração, no entanto, desenvolvera em relação a ele uma grande ternura como se Deus tivesse querido compensá-lo pelos filhos cuja existência o seu voto de castidade impossibilitou. Procurava adaptar-se à maneira de ser do irmão, com naturalidade, sempre a evitar colocar-se no papel de superprotector, intervinha nas suas brincadeiras, ora apelando à criança que cada um de nós alberga pela vida fora, ora desempenhando o papel de camarada em assuntos de homens, nunca o reduzindo à condição de inferioridade que a sociedade costuma atribuir aos que necessitam de cuidados especiais. Acima de tudo, desejava que ele fosse feliz e cercava-o de optimismo, de boa-disposição.

    O CULPADO

    Ora, nesse domingo, a Missa foi cedo para que os lavradores pudessem cuidar dos seus bichos e entreter-se em tarefas inadiáveis como dessedentar hortas e milheirais. Os boieiros tocaram a cria para os lameiros ainda antes de o sol cobrir totalmente a relva com o seu hálito quente e de nuvens de insectos investirem sobre as rezes com enorme voracidade. Junto aos caboucos por onde iam deslizando riachos tagarelas, a sombra dos amieiros e dos choupos reservara espaços de erva fresca que os animais buscavam com avidez .

    O Raul manteve-se atento aos movimentos das vacas e dos vitelos por algum tempo mas, vendo-os a pastar com tanta aplicação, foi subindo à parte mais alta do lameiro, uma piçarreira separada do caminho público por um muro de pedra que demarcava a propriedade e, acocorado, pôs-se a construir uma casinha, como fazem as crianças, sobrepondo pequenos calhaus que encontrava por ali em abundância. De quando em quando, erguia-se a verificar se os bichos não teriam passado o cabouco para o lameiro contíguo. Ao vê-los a pastar, pachorrentos e aparentemente tranquilos, regressava ao seu enredo. Num desses momentos de responsável atenção, uma pedra vinda do caminho desfez a construção que o Raul tão laboriosamente edificara. Ao dar conta do estrago, o homem deitou boca fora um chorrilho de imprecações e ameaças, olhando em volta à procura do malfeitor que, cosido ao muro, escapava ao seu ângulo de visão e se perdia de riso.

    Ainda a barafustar e a praguejar, concentrou-se novamente no seu entretenimento. Pedra a pedra, foi levantando as paredes. Restava só o telhado para o qual tinha que juntar uns guiços e uns punhados de ervas secas. Pôs-se em pé, avançou uns passos e, de costas voltadas ao caminho, olhou para o lugar onde os ruminantes ainda há pouco tosavam a erva aplicadamente. Nesse instante, uma lastra caiu sobre a casinha. O Raul, virou-se mas já não conseguiu ver quem lhe destruíra o brinquedo. Desafiou-o a aparecer, e agraciou-o com o repertório completo de nomes feios que lhe vieram à mente, tudo acompanhado de gestos ameaçadores. Com passos nervosos percorreu a área, em todos os sentidos, investigando até onde poderia esconder-se um lagarto. Esteve quase a descobrir o culpado mas uns arbustos, alinhados ao longo do barranco, protegeram-no. Também já não era preciso porque, acto contínuo, o padre Guilherme pôs-se em pé, saltou o pequeno muro e agarrou-se ao irmão a rir como um perdido. O Raul, ainda furioso, tentou desenvencelhar-se, em protestos e ofensas:

    - Eu logo vi que eras tu, meu c. ! Vai-te f. !...

    Mas quanto mais praguejava, mais o irmão se ria. Acabaram os dois abraçados, às gargalhadas, cada um incentivado pelo riso do outro.

    E assim abraçados atravessaram a povoação, tangendo a cria, a caminho de casa, que a irmã já devia ter o almoço pronto.

    Por: Nuno Afonso

     

     

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