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    Arquivo: Edição de 15-09-2005

    SECÇÃO: Crónicas


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    D. ERMESENDA, A DEVOTA (4)

    A orada de Ermesenda

    A travessavam agora grandes clareiras donde se viam as agras de Alfena que se estendiam até aos montes que as separavam das terras de Santo André de Sobrado e S. Miguel de Rebordosa, já na Terra de Aquilar de Souza. À vista de homens armados e estandartes, alguns servos e mouros cativos (mudéjares) que trabalhavam nos campos duma abegoura (quinta) com choupanas e alpendres colmados, escondiam-se temerosos e depois regressavam quando avistavam as damas e monges, olhando numa atitude respeitosa.

    O grupo entrava novamente num frondoso bosque e mais adiante chegou a um alto donde se avistava, em toda a sua amplitude, um belo e extenso panorama. A floresta estendia-se até lá abaixo, às margens dum pequeno rio que surgia entre duas elevações e serpenteava na planície, por entre vegetação luxuriante. Era o pequeno rio Leça que, na sua viagem para o mar, passava perto do mosteiro beneditino de S. Salvador de Leça, no lugar de Recarei e continuava, para poente, por terras de Bouzas que se perdiam, ao longe, no horizonte já róseo dum fim de tarde solheiro. Em frente, para lá do rio, o caminho prosseguia por uma elevação que levava ao mosteiro de Santo Agostinho de Águas Santas cujos merlões da torre se distinguiam, lá em cima, entre o arvoredo e continuava pelos brejos e sapais de Paraños, Vale Arítia até ao burgo portugalense. Era a Via das Três Áuguas: Água Longa, Aguas Santas e a Arca d’ Água, para não contar as Águas Férreas que estava fora daquele trajecto, lá para os lados de Labruje

    Ilustração RUI LAIGINHA
    Ilustração RUI LAIGINHA
    À esquerda, para nascente, numa plataforma planáltica, avistava-se uma pequena ermida românica, em granito, com telha mourisca, cercada de frondosas árvores. Era a orada que D. Ermesenda ali tinha mandado construir em jovem e onde se recolhia nas suas preces e enlevações contemplativas. Tinha sido sagrada pelo Abade Tudeíldo, de Leça, tio de Randulfo. Aquela airosa terra verdejante e rica pertencia-lhe, por vontade de seu pai, D. Gonçalo Trastemires e para lá se dirigia para orar, descansar e aguardar pelos seus sobrinhos que a iriam conduzir ao Paço de Avioso dos senhores da Terra d’Amaia onde sua cunhada Ledegúncia padecia enferma.

    Atravessaram o rio que discorria com fraco caudal, por uma pequena e tosca ponte de madeira e quedaram-se na outra margem onde corria, bordejando o caminho, num prado encharcadiço, com canaviais e choupos, um pequeno riacho de águas cristalinas (o Gandra) que brotava duma nascente algures lá em cima e seguia em direcção ao Leça. Nele, os cavalos e azémolas de carga se abrevaram (dessedentaram) e os servos e cavaleiros encheram os cantis. Subiram então a encosta que levava à ermida, pelo trilho que atravessava os montes que se erguiam a nascente e seguia para a Terra de Aquilar de Sauza, parochias de S. Mamete e S. Bartolomei de Vallongo, nos confins do antigo Território Anégico.

    Ali chegados, apeiam-se no adro do pequeno templo. D. Ermesenda é ajudada a apear-se, um servo abre a porta da orada em arco românico e a nobre dama entra acompanhada da sobrinha, do D. Abade de Leça e de frei Bernardo, enquanto os homens armados do séquito, cá fora apeados, tiram as guantes ferradas (grandes luvas com protectores de ferro), o casco chapeado, pousam as ascumas (lanças) e broqueis (escudos), conversam e descansam, afagando os cavalos. Os servos de abegoaria, visivelmente fatigados, sentam-se nos escanos (bancos corridos) de pedra junto às paredes da capela. Lá dentro, D. Ermesenda, a sobrinha e os monges, prostrados, rezam com devoção, perante a imagem do mártir S. Lourenço d’Asmes, o patrono da orada. Após alguns minutos, D. Randulfo levanta-se, benze--se, despede-se das religiosas e sai com o frade, de baldoairo (livro das ladainhas) na mão. D. Maior acompanha-os e despede-se novamente cá fora. Já montado no seu fouveiro (cavalo alazão), o abade, após algumas recomendações, faz um aceno e, seguido de frei Bernardo, enceta pelo trilho, junto ao rio, que os vai levar ao mosteiro de Leça.

    Entretanto, D. Ermesenda, após a oração, senta-se num pequeno escabelo (banco com costas), junto ao postigo do pequeno cubículo que fazia de sacristia, donde se avistava o amplo vale do Leça. Junto de si, uma cruz de prata trabalhada que seu pai lhe ofereceu e que estava na posse dum mouro em fuga, durante um fossado nos pantanosos brejos de Montemor. Era ali que, em jovem, muitas vezes se sentava, em sereno recolhimento, cimentando com os seus sonhos, as suas convicções. Agora, já com 68 anos, era o passado que surgia na sua mente, com o espírito sereno de quem tinha seguido o destino ditado pela sua Fé. Olhava, lá em baixo, as margens do Leça, onde dali se avistavam algumas clareiras com campos cultivados por lavradores de Alfena e, mais acima, nas terras mais secas, pequenas palhotas e choças de madeira e colmo e uma abegoaria (cerca com animais) com algumas vacas e ovinos. Aquele lugar, lá em baixo, com úberes avessadas e terras encharcadas, já começava a nascer.

    Era assim, naqueles recuados tempos, o bucólico lugar onde, passado um milénio, nasceria a cidade de Ermesinde, da D. Ermesenda, que os vários Senhores de Vallis Longus, transformaram numa floresta de pedra, betão e alcatrão. Ali vivem como abelhas em colmeias, os seus habitantes do século XXI, que se deslocam, mal humorados e agressivos, em ruidosas e fumegantes carapaças de chapa rolantes e cuja finalidade na vida, é procriar, consumir nas grandes ucharias de betão lá erigidas, poluir e conspurcar o bucólico Leça que passou a ser um esgoto mal cheiroso e migrar, sazonalmente, para os Al Gharbes mouriscos onde se deliciam a tostar a pele ao sol. Sempre dependentes e endividados aos ganha-dinheiros, ajuntadores de moeda, que dominam aquele estranho mundo de Fé perdida.

    Por: Reinaldo Beça

     

     

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