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    Arquivo: Edição de 30-08-2005

    SECÇÃO: Crónicas


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    D. ERMESENDA, A DEVOTA (3)

    O séquito do vicarius regis

    Naquele ano de 1093, já o sol iniciava a sua descida no horizonte manchado pelo verde escuro da densa vegetação que se estendia até ao mar, na via de Vimaranis (Guimarães) para Portugale (Porto), seguia um grupo de cavaleiros, formado por alguns homens de armas com pendão, que ladeavam duas damas veladas montadas em duas éguas e acompanhadas de dois monges que cavalgavam, um ao lado e outro atrás, seguidos por servos apeados que conduziam duas azémolas de carga, carregadas de bagagens. Seguiam, em marcha pousada, por uma vereda sombria que mais parecia um sesmo ou arrife, que rasgava uma zona florestal densa de pinheiros, carvalhos, castanheiros e árvores de frutos silvestres e bordejada por brejos com denso bravio. Tinham atravessado as veigas férteis da Terra de Refojos de Leza (Santo Tirso) e o cruzamento com o trilho que subia a montanha que levava ao extenso planalto onde se situava o mosteiro de S. Pedro de Ferraria (Paços de Ferreira), nos confins da Terra de Aquilar de Sauza e que continuava até villa Ranusindi (S. Pedro da Raimonda) e terras de Riba-Vizela, de Riba-Tâmega e de Basto.

    Após breve paragem na sombria encruzilhada de Água Longa, com lúgubres e fantasmagóricos carvalhos seculares cobertos de hera, donde partia o trilho para as terras de Coronado, Avioso, Guilhabreu, mosteiro Labrense, Águas Férreas e Labruge e que cruzava a via romana para Bracara, em Alvarelhos, o grupo continuou na senda que levava ao burgo portugalense, de Sancta Marina de Dorii ou de Portugalii onde, no alto de Peña Ventosa, se erguia a amuralhada cidadela sueva, à guarda da Senhora de Bendoma (Vandoma) e sob o domínio da Sé portucalense cuja diocese já vinha do Séc. VI, ainda no tempo do Reino dos Suevos.

    Naquela cidadela de Portugale (Porto) foi morto, à mão de godos e romanos, o rei suevo Requiário que, em 448, se tinha convertido ao Cristianismo, tornando-se o primeiro rei bárbaro a abraçar a fé de Cristo. Agora, a Sé Portucalense encontrava-se vaga, sem prelado há já 18 anos, e semi-arruinada desde o tempo dos assaltos vikings e do hashib de Córdova, Almançor, nos fins do século passado (Séc. X). Foi naquele burgo que teve início o antigo Condado de Portugale, após a sua presúria pelo conde galego Vímara Peres, em 868, ao serviço do rei Afonso III das Astúrias e dele viria, mais tarde, o nome glorioso da futura nação portuguesa, embora os condes de Portugale, passassem a residir no interior, em Vimaranis (Guimarães), dado o perigo que, naquele tempo, representava a costa, principalmente as rias e a foz dos rios, sujeitas aos ataques de piratas mouros das cidades do sul e dos Normandos (vikings) que assolaram as costas galegas e portugalenses durante os séculos IX, X e parte do XI, pilhando, matando tudo o que encontravam. Daí a maior parte dos grandes senhores viverem no interior, inclusive os condes de Portugale.

    AS DUAS DEVOTAS

    O grupo continuava a jornada pelo sombrio trilho de árvores seculares, com o cavaleiro da frente a aprumar, sobre o coxote, o guião de Paio Guterres, patrono do mosteiro de Mire de Tibães e ex-Vicarius Regis de Afonso VI de Leão e Castela, em Bracara e no território portugalense, o que significava protecção real para os portadores de tal pendão. Seguiam-no quatro homens de lança de faia com sobrevestes de brial de lã sobre o saio de malha de ferro, capelo e casco chapeado com os escudos à garupa, presos ao arção da sela. Uma das damas, já de idade, de porte nobre e sereno era seguida por outra mais jovem, franzina e pálida. Ambas veladas com um fino oral que lhes cobria o rosto. Um dos monges também idoso mas firme na sela, de capelo para trás, que descobria uma cabeleira alva com uma coroa bem desenhada. Era um pouco obeso, mas de aparência robusta e saudável. Vestia um caçote escuro e almofadado, uma capa negra presa por uma fíbula prateada que deixava entrever, ao peito, um grande crucifixo de prata trabalhada, pendente dum grosso cordão do mesmo metal. Na cinta, um cinturão tauxiado de prata, donde pendia uma bainha com uma larga toledana. Cavalgava num alazão, ao lado da dama mais idosa, dirigindo-lhe de vez em quando a palavra.

    Pelo pendão e o séquito que acompanhava as damas e os monges, devia ser gente de alta linhagem. De facto, tratava-se de D. Ermesenda Gonçalves e sua sobrinha D. Maior Mendes, da família da Maia, duas Deo vuotas (devotas, votadas a Deus). D. Ermesenda, a mais idosa, era tia de Soeiro Mendes, o poderoso magnata, chefe da linhagem da Maia, fronteiro e governador de Santarém. A mais nova era sua sobrinha, D. Maior Mendes, irmã de Soeiro Mendes, que, impressionada e motivada pela vida espiritual da sua tia, a seguiu na sua vocação dedicada à fé de Cristo. O monge armado que cavalgava ao lado de D. Ermesenda e que aparentava mais ou menos a mesma idade, era D. Randulfo, o erudito abade do velho mosteiro beneditino de S. Salvador de Leça, que foi auxiliar do falecido bispo portucalense, Sisnando e sobrinho do antigo abade daquele mosteiro, D. Tudeíldo, o velho amigo e mestre de D. Ermesenda, na sua juventude.

    As duas devotas damas regressavam do mosteiro de Guimarães, junto ao Paço onde residiu sua sobrinha Dórdia Mendes, irmã de Soeiro Mendes e de D. Maior e esposa do Vicarius Regis, Paio Guterres. Tinham partido para Mire de Tibães, deixando o Castelo de S. Mamede, ainda um Paço fortificado, dado que o cargo de D. Paio tinha terminado, por acção do conde D. Raimundo de Borgonha, agora genro do rei Afonso e novo governador da Galiza e de Portugale.

    O aguardamento (séquito) que as acompanhava era formado por homens de D. Paio. Tinham descansado e comido algo no mosteiro beneditino de Santo Tirso, cujo couto estava sob a protecção do sobrinho Soeiro Mendes da Maia. Vinham agora acompanhadas pelo Abade D. Randulfo e de Frei Bernardo que, do mosteiro de S. Bento, seguiam para o velho cenóbio de Leça, para, no dia seguinte, se dirigirem à Sé portucalense, vaga já há 18 anos, desde a morte do bispo Sisnando, em 1075. Iam lá receber o bispo Crescónio, de Coimbra, em visita à diocese portucalense. O arcebispo de Braga, D. Pedro, que substituía o Bispo portucalense, durante a vacância daquela Sé, tinha falecido no ano anterior (1092), depois de deposto pelo rei Afonso, em 1091 e internado num convento. Agora, também a Sé de Braga estava vaga e, no território portugalense, a sul do rio Minho, só existia o bispo Crescónio, de Coimbra, que desenvolvia enorme actividade por todas as comunidades cristãs daquele território. Mesmo Santiago de Compostela tinha ficado sem o seu arcebispo D. Diogo Pais, também deposto pelo rei, há cinco anos, em 1088.

    A REFORMA LITÚRGICA

    Não há dúvida que o Imperador D. Afonso fez uma razia no alto clero galaico-portugalense, tudo por causa da reforma eclesiástica beneditina de Cluny ou franco-romana (Gregoriana), que ele apoiava e da qual D. Randulfo e o bispo portucalense D. Sisnando foram grandes promotores. De facto, Randulfo continuou a reforma que seu tio, o Abade Tudeíldo tinha pregado e, como auxiliar do bispo Sisnando, esteve no Concílio de Coyanza em 1055 e no de Compostela em 1056, trazendo consigo essa reforma monástica e litúrgica. Agora, prestava o seu contributo à Sé portucalense sem bispo há quase duas décadas e para lá seguiriam, após pernoitarem no semi-arruinado mosteiro de Leça (ainda não era do Bailio).

    De facto, o antigo cenóbio de monges e monjas beneditinas de S. Salvador de Leça que se situava no lugar de Recarei, junto ao rio Leça e abaixo do Monte de Custóias, era já dos finais do Sec. IX e, assim como outros daquele tempo, estava bastante arruinado, desde as incursões do hashib Almançor, nos finais do século X. Mais tarde, em 1118, foi doado, por D. Teresa, à Ordem Militar do Hospital de S. João Baptista de Jerusalém (Ordem de Malta), que construiu ali um mosteiro fortificado, uma autêntica fortaleza digna dos cavaleiros hospitalários do Priorado e Baliado de Leça do Bailio, do qual hoje resta apenas a torre, junto à Igreja gótica do Séc. XIV. Fernando Afonso, filho bastardo de D. Afonso Henriques e de D. Châmoa Gomes, viúva de Paio Soares da Maia, foi dos primeiros priores desta ordem hospitalar, portanto um dos primeiros Bailios de Leça. Foi também alferes de seu pai, a seguir ao seu meio irmão, Pêro Pais da Maia, o Alferes, que também era filho de D. Châmoa e de seu marido Paio Soares da Maia.

    O arcebispo de Braga, D. Pedro que substituía o bispo portucalense, durante a grande vacância daquela Sé, tinha falecido no ano de 1092, depois de ter sido demitido do lugar e encerrado num convento pelo rei Afonso. Foi mais uma vítima da reforma litúrgica romana em que se empenhavam os beneditinos de Cluny, chamada regra beneditina ou franco-romana e que vinha substituir os antigos usos monásticos da Hispânia. A esta reforma apoiada pelo poder franco da Espanha e Borgonha, reagiram alguns mosteiros e dioceses. E D. Pedro tinha-se batido pelo primado da Sé de Braga sobre a de Compostela, do arcebispo D. Diogo Pais, que também foi destituído em 1088. Em Braga, iniciou a construção duma grandiosa basílica de peregrinação, no estilo da de Sainte-Foy-de-Conques e já sagrada, em 1089, pelo arcebispo Primaz de Toledo, Bernard de Sédirac. Esperava vir a rivalizar com a de Santiago numa competição pelo primado religioso entre a Sé bracarense e a de Iria-Santiago, competição essa que também contribuiu muito para a soberania do futuro reino de Portugal. Se, mais tarde, os maiorinos de D. Teresa, não a tivessem destruído, influenciados pelo pérfido e intriguista arcebispo Diego Gelmirez, de Santiago, teríamos hoje uma Sé de Braga muito diferente. Atente-se que Gelmirez, na altura desta história, era ainda chanceler ou escriba do conde D. Raimundo e, só em 1101, viria a ser sagrado bispo de Compostela, onde permaneceu quase meio século! (coisa má é sempre rija!). Um seu arcediago, homem de sua confiança, o francês Hugo, foi sagrado bispo do Porto, em 1113, e parece que nunca lá residiu, embora a cidade portucalense lhe tenha sido doada pela rainha D. Teresa. O bispo portugalense, D. Hugo, estava geralmente junto do arcebispo de Toledo ou em Roma com o Papa, a tratar dos interesses do ambicioso arcebispo de Santiago, na sua guerra contra o primado da Sé Bracarense, primado esse defendido pelos arcebispos D. Pedro, S. Geraldo, Maurício Burdino e por D. Paio Mendes da Maia, já nos alvores do reino de Portugal. Com o arcebispo João Peculiar, a rivalidade existente entre as duas dioceses, abrandou.

    Por: Reinaldo Beça

     

     

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