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    Arquivo: Edição de 30-06-2005

    SECÇÃO: Crónicas


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    O Tóilas

    Ao seu jeito extrovertido, característica das gentes de Carção e Argozelo, o homem percorria o centro de Bragança a vender cautelas, pedacinhos de sonho que amenizavam a rotina dos dias. E acautelado seria quem não se deixasse enlear, que ele tinha mesmo artes de convencer o mais pintado com a sua lábia de judeu.

    Ali, na Praça da Sé, coração da cidade, carambolava entre os cafés Chave d’ Ouro, Central, Moderno e Flórida, insinuante, pegajoso, convincente nos preliminares e decidido na estocada final. Algumas vezes esperava os clientes à porta do café, outras seguia-os até ao interior do estabelecimento, outras ainda, subia e descia os passeios não fosse alguém escapar à sua apertada marcação. Como quem não quer a coisa, ia despachando o expediente, mau grado a concorrência dos quiosques postados cada qual a seu lado da praça.

    Ao longo dos anos fidelizara vasta clientela, tornara-se uma espécie de talismã pelos prémios atribuídos a vários dos seus fregueses. Só o senhor Alves, funcionário do Grémio da Lavoura e representante de uma conhecida agência de Seguros, arrebatara já dois primeiros prémios da Lotaria Nacional. Numerosas foram as recompensas secundárias e incontáveis as terminações e aproximações que lisonjeavam a gula dos mais ambiciosos. Imolavam à deusa da sorte a satisfação de outros naturais desejos à espera de algo que, de uma vez para sempre, lhes garantisse a bem-aventurança terrena. Esses já tinham inscrição garantida na carteira comercial do Tóilas. Preciso era que outros tivessem iguais apetites, que ganhasse amplitude o número de devotos da esquiva divindade. Com tal objectivo, colocava o nosso homem todo o seu conhecimento baseado nas técnicas que a experiência lhe ia facultando. Havia que sustentar a mulher D.ª Ginete e os filhos o mou Lino, a nha Zabelinha e a nha Goreti que andavam nos estudos.

    Conheci-o ainda era pequenote, porque me chamava a atenção o boné, que eu identificava com o dos polícias ou dos oficiais do regimento de Caçadores 3 que recebiam a continência dos magalas, e os papéis coloridos que trazia na mão e exibia às pessoas. Já mais crescido, procurava passar-lhe ao lado pois “quem não tem dinheiro não tem vícios”. Observava-o de longe na sua obstinada faina profissional, quase sempre bem sucedida.

    Tivemos uma aproximação maior quando comecei a frequentar a casa dos meus futuros sogros. Sempre me intrigou o facto de a amizade florescer entre pessoas frequentemente tão díspares. O meu sogro foi a criatura mais desapegada do vil metal das que até hoje conheci; o Tóilas tinha por ele verdadeira adoração, era um “mão-de--vaca” na dialectologia brasileira. Havia um certo exagero na maneira como administrava as poupanças da família. Bem que a Dª Ginete gostaria de trazer as filhas adolescentes com melhor encadernação, tanto mais que Deus lhes concedera beleza quanto baste, o que para ela era motivo de orgulho, mas não havia forma de convencer o Tóilas a flexibilizar o comportamento em tão melindroso assunto. Pelo contrário, achava ele que isso iria aumentar o número de gabirus a rondarem-lhe a porta, em consequência cresceriam as suas preocupações, que os comportamentos juvenis são bem mais difíceis de controlar do que o orçamento caseiro.

    Convencida de que era inútil a insistência, escolheu outro caminho: começou a lavar e passar roupa para fora. O Tóilas protestou, discutiu, ralhou. Que sempre ganhara para manter a família, que era uma vergonha a sua mulher trabalhar para outros, não admitia passar por tal humilhação, o que diriam os seus amigos? Mulher minha não anda a servir, - asseverava ele - lugar de mulher é em casa a tomar conta do homem e dos filhos. Mas agora era ela quem dava cartas. Gostou da experiência, deu início ao pé-de-meia e pô-lo a bom recato. Ia, finalmente, comprar o que bem entendesse, não para ela que sempre viveu com pouco, mas para as suas meninas que nunca lhe deram “quebramentos de cabeça”, que é como quem diz: não andavam por ali a fazer poucas vergonhas. O Lino, é claro, não ficaria esquecido.

    O Tóilas perdeu os primeiros pontos mas julgou ganhar o combate no próximo assalto. Exigiu que ela lhe entregasse o fruto do seu trabalho, o homem da casa era ele e não admitia afrontas à sua autoridade. Fortalecida pelo êxito até então alcançado, a Dª Ginete recusou energicamente. Ele insistiu e ameaçou. Ela desafiou-o.

    Os meus sogros eram os confidentes de um e do outro, todavia o aconselhamento era o mesmo: não era bonito zangarem-se depois de tantos anos de bom viver, conversassem na presença dos filhos, talvez eles pudessem ajudar que eram sensatos e viam as coisas de acordo com os novos tempos. Vinham a horas diferentes, desabafavam, ouviam as opiniões dos amigos mas ficava cada um na sua.

    Ilustração Rui Laiginha
    Ilustração Rui Laiginha
    A novela ameaçava eternizar-se, porque nem um nem outro queria ceder. No entanto, Dª Ginete levava uma vantagem que o Tóilas não poderia reverter. Aos poucos, intuiu que ela tinha razão, mas custava-lhe admiti-lo. Até já aceitava que ela tivesse direito a dispor do dinheiro, porém continuava a exigir que lho entregasse quando as senhoras lhe pagassem.

    - Olha lá - dizia o meu sogro - se tu achas que ela tem direito ao dinheiro que ganha, porque é que fazes questão que ela to entregue?

    - Ó pá, eu só quero ver “a cara do Cristo”.

    Queria dizer na sua que só desejava ter as notas na mão, já não se importava muito em ter que as devolver. Julgava assim conservar a ilusão da autoridade que, em definitivo, perdera.

    Por: Nuno Afonso

     

     

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