Ande lá, seja simpático!
Notícia recente dava conta de que as autoridades argentinas estavam seriamente preocupadas com o nível a que tinham chegado as relações interpessoais da sua gente e decidiram tomar medidas destinadas a inverter o rumo dos acontecimentos. Dito de outro modo: as pessoas tinham-se esquecido de dizer buenos dias ou buenas tardes quando passavam umas pelas outras; de retribuir com um gracias qualquer pequeno favor recebido, uma informação, por exemplo, ou por mera cortesia; de dirigir um sorriso, uma palavra afectuosa, um gesto amistoso nas inúmeras ocasiões diárias em que tal se recomenda.
APENAS UM FAIT-DIVERS?
No meio de um conjunto de informações sobre guerras, declarações e comentários políticos, assuntos económicos considerados de particular relevância, inaugurações ou despedimentos de trabalhadores, surpreende a natureza daquela notícia, parece mesmo um tanto descabida. Que pode interessar--nos se os argentinos são bem ou mal educados a ponto de tal característica determinar a intervenção dos seus dirigentes ? Em que pode isso afectar a ordem mundial e a nossa vida quotidiana ? Diríamos que se trata antes daquilo a que se convencionou chamar um fait-divers.
|
Ilustração Rui Laginha |
Não é, porém, tão despicienda como isso. Antes de mais, porque os membros de uma comunidade nacional têm fortíssimos laços que provêm da comum natureza humana, da inclusão social, da identidade política; depois, porque a impressão que se tem de um povo é determinante para o turismo, hoje uma das mais importantes indústrias deste mundo globalizado em que vivemos. É elementar que a um país não basta dispor de paisagens paradisíacas, equipamentos de lazer de refinado bom gosto, requintada e típica gastronomia, monumentos e outras referências de grande interesse cultural. Importa ser bem acolhido nos estabelecimentos hoteleiros, ver reflectido no olhar e no comportamento das pessoas que se contacta a luz e o calor da hospitalidade, uma adesão ao outro que venha do íntimo, que não seja um mero cálculo interesseiro.
A nossa gente sabe receber como sabe conviver. Quem nos visita guarda boas lembranças da nossa maneira de ser, da nossa forma de estar no mundo. «O povo português é muito simpático, muito caloroso» – ouvimos dizer aos que nos visitam. Não o dizem apenas aos nossos repórteres, dizem-no também quando, depois, os encontramos nos seus países de origem. Já ouvi manifestações desse teor em Marbella a um agente turístico que tinha amigos em Viana do Castelo que, além da própria cidade, lhe deram a conhecer Braga, Guimarães Porto e outras localidades próximas ; ouvi-as à dona de uma loja de artigos desportivos em Caen, na Normandia, acerca de umas férias no litoral norte do nosso país classificadas como inesquecíveis pela afabilidade e gentileza das pessoas e pela excelente e variada culinária; ouvi-as por cima de um balcão numa pequena loja do centro histórico de Monte Carlo; ao condutor do petit train turístico de Grasse que conhecia a Póvoa de Varzim, nome que teve dificuldade em pronunciar. Curiosamente, são mencionadas, quase sempre, localidades e gente nortenhas. Será apenas porque nos declaramos como procedentes do Norte ?
ALICE DO OUTRO LADO DO ESPELHO
Querer agradar é nosso timbre. Somos capazes de fazer sacrifício para ajudarmos quem de nós precisa, do mesmo passo que calcamos duramente os que de nós dependem. Que o digam os imigrantes quantas vezes explorados e maltratados sem o mínimo remorso. Que o digam igualmente os nossos patrícios aliciados para trabalharem em países estrangeiros e ali escravizados por angariadores nascidos em terra lusa. É Alice do outro lado do espelho. Quero acreditar que os "sacanas" constituem, apesar de tudo, a minoria.
Mas seremos educados, gentis, no dia a dia? Quantas vezes temos ouvido desabafos do tipo: «Já não há respeito. Isto, hoje, é uma pouca vergonha?». Não vale a pena indagar se, em tempos afastados, era diferente, se havia mais educação, mais atenção ao próximo. Provavelmente, noutras épocas, os mais velhos teriam idênticas reacções às que actualmente vamos ouvindo.
Isto significa que tudo está bem, que podemos dormir em paz com a nossa consciência de cidadãos? Certamente que não. Há pequenos gestos que nada custam mas que fazem muito bem ao "ego" dos receptores assim como dos emissores: um aceno de agradecimento aos automobilistas que abrandam a marcha dos seus veículos para nos deixarem atravessar tranquilamente nas passadeiras; um "se faz favor" ao solicitarmos um pequeno serviço, mesmo se o destinatário está ali para nos atender; a portuguesíssima expressão "obrigado(a)" ou "muito obrigado(a)" quando até nem há razões para nos sentirmos agradecidos. Vamos deixar de "empinar o nariz", descer à terra e aceitar que todos, independentemente de raça, credo, idade ou posição social, partilhamos de uma única natureza humana.
Por:
Nuno Afonso
|