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    Arquivo: Edição de 28-02-2005

    SECÇÃO: Crónicas


    O Serradela

    foto
    Quando vi aquele sujeito esgrouviado e nervoso, olhos pisca-pisca, que mastigava em seco, tinha espuma salivar peganhenta aos cantos da boca, e me disseram que era o nosso barbeiro, temi. Temi e agoniei. Ainda para mais apresentava-se de camisola de lã de cor indefinida, excessivamente justa ao torso de pirolito sem bola, calças de cotim cujas perneiras ficavam uma boa mão travessa acima dos tornozelos e alpergatas de feira manchadas e deformadas pelo forcejar dos dedões dos pés, manifestamente recalcitrantes de se sentirem de tal modo apertados.

    Imaginei a manápula esquerda do homem com dedos semelhantes a dentes de espalhadoura, pressionando as nossas frágeis cabeças, enquanto a direita brandia uma tesoura afiada capaz de, no mínimo, nos ceifar as orelhas. E já sentia o bafo dele no cangote, o seu hálito desagradável tanto mais que o espaço destinado à tosquia era reduzido, o cheiro a bafio demasiado forte, dados o número de pessoas ali concentradas e a impossibilidade de abrir as janelas por causa do frio que vinha do exterior.

    Desenho Rui Laiginha
    Desenho Rui Laiginha
    A CONJURA

    O Serradela era figura das mais conhecidas em Bragança no tempo em que eu comecei a frequentar o Seminário Maior desta cidade, teria os meus treze, catorze anos. Contudo, para muitos de nós, naturais de várias aldeias e vilas do distrito e membros de uma comunidade eclesiástica afastada do convívio geral, não passava de uma avis rara, uma personagem de ficção, o que, desde o início, provocou antipatia e deu origem a comentários pouco elegantes acerca do homem que, periodicamente, vinha tosar-nos as trunfas. Daí à conjura para o afastar foi um pequeno passo. A ideia partiu dos mais pequenos, do 4º e 5º anos de Humanidades, adolescentes rebeldes, apenas quanto bastasse para não violentarmos o espartilho a que o Regulamento nos sujeitava e que o Reitor fazia cumprir à letra.

    Começámos por introduzir na sala um ratinho que alguém se encarregou de caçar nos baixos do edifício, próximo da arrecadação. Ao alarido que fizemos no encalço do bicho, o Serradela respondeu com a mais olímpica indiferença e continuou a desbastar os tufos capilares da vítima de momento, que havia muito serviço a cumprir. Imperioso era encontrar algo mais eficaz e não faltaram sugestões. O Paredes, miúdo de nariz comprido e afilado e buço nascente que lhe davam um aspecto de musaranho, lembrou que podíamos deitar cola no cabelo para estragar a tesoura do fígaro. O Fagundes, filho de sapateiro, alvitrou a colocação de pez à entrada da sala, de maneira a que o barbeiro ficasse com os pés presos e não pudesse trabalhar. A todos respondia o Agostinho Russo, líder natural do grupo, que eram ideias sem cabimento, porque davam azo a que o Reitor fosse chamado e a brincadeira saísse muito cara a alguém senão a todos. O melhor era aguentar e cara alegre. Afinal, só tínhamos de “ir à poda” meia dúzia de vezes no ano. Embora a decisão não tivesse agradado aos mais afoitos, todos aceitaram a decisão.

    FORRETA

    Anos depois, integrado na vida quotidiana da urbe, vim a conhecer aspectos interessantes acerca do Serradela. Era um dos seis filhos de um guarda fiscal, avarento até ao fundo mais fundo da alma. Dito assim, ainda que se leve em conta o que representava nessa época um vencimento mensal do Estado, mas não ignorando a despesa mínima indispensável para alimentar seis bocas vorazes, mais a roupita e o calçado volta e meia a necessitarem de renovação, pode não impressionar por aí além. Talvez o homem precisasse de fazer algum sacrifício. Mas este agente da ordem era mesmo danado de forreta. Repare o leitor no que lhe vou contar e diga-me se exagero. À hora de preparar o almoço, chamava a prole e dizia:

    – Quem não quiser almoçar, ganha um tostão.

    Um tostão valia muito para um garoto: dava para comprar uma mão cheia de rebuçados mesmo dos que traziam cromos dos jogadores de futebol com possibilidade de ganhar uma bola de "cautchu"; as raparigas ainda podiam adquirir uns ganchos para o cabelo na tendeira da praça. Os dois rapazes e as quatro moças, embora com os estômagos às cambalhotas, aceitavam o dinheiro e prescindiam da refeição.

    À noite, quando os pequenos, reloucados de fome, se preparavam para a primeira refeição do dia, o pai intimava:

    – Quem quiser jantar, tem que me dar um tostão.

    O leitor ficou, de repente, sem fome? Quando a história me vem à lembrança também perco o apetite. Pois é, o fuínha do guarda fiscal recebia de volta o dinheiro e poupava seis refeições diárias.

    Se alguém batia à porta a hora em que as crianças estivessem a dormir, pedia encarecidamente:

    – Fale baixo, por favor, que os pequenos podem acordar e pedir-me pão.

    Não obstante as provas de resistência a que foram sujeitos, todas estas crianças conseguiram sobreviver. No entanto, o Serradela herdou um apetite devorador que nada parecia capaz de saciar. Posto a comer ao desafio, ganhou muitas apostas como a da canastra de figos de que já tive ocasião de escrever nestas páginas.

    Por: Nuno Afonso

     

     

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