O passeante invisível
Nunca ninguém o viu. Nunca ninguém se deparou com ele ao cruzar um umbral, ao dobrar uma esquina, fosse noite ou dia. Mas nunca ninguém duvidou que ele se passeava invisível por toda a cidade. Alguns afirmavam ter entrevisto sombras que eram, indubitavelmente, projeções da figura fantástica do passeante invisível. Outros garantiam ter ouvido sons abafados, momentâneos arrastamentos como de passos, que comprovavam que ele se passeava por ali.
A cidade é feita de muitas estruturas artificiais. Físicas e organizativas. Os homens precisam de um lugar coletivo para viver. Estarem juntos dá conforto e segurança, mas demasiada proximidade torna-se inquietante. Estar a sós com outro homem numa rua deserta, noite alta, é tão ou mais assustador do que enfrentar os silêncios e os ruídos da noite na floresta, na serra, no campo. Os homens precisam de estruturas, muros que os separem dos outros homens.
O passeante invisível construíra a cidade, mantinha as estruturas fortes, escorraçava os inimigos, assegurava os fornecimentos. Ele era forte e destemido; passeava-se incógnito por toda a cidade, sobretudo no ermo da noite. Diziam. Porque viam sombras, ouviam certos sons reveladores, porque só podia andar por lá, invisível.
- Olhem, lá vai a sombra dele, por entre os pilares daquelas arcadas - gritava um.
- Olhem, é ele, no reflexo do vidro daquela montra - clamava outro.
Ninguém punha em dúvida estes avistamentos fantasmáticos. Toda a gente sabia que o passeante invisível andava por lá. Nalgum sítio havia de estar: nas arcadas, nos vãos das portas, nas gares rodoviárias ou marítimas. Os seus sinais vislumbravam-se sempre a desaparecer por detrás de alguma estrutura da cidade. Ele andava lá, mas invisível.
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ILUSTRAÇÃO @RODOLFO.BISPO77 |
Conta-se que, em tempos que ninguém já recorda, um jovem, irreverente como todos os jovens, ao ouvir alguém asseverar, pela milésima vez, que acabara de avistar a silhueta do passeante invisível, não se conteve, como seria prudente:
- O passeante invisível não existe; é uma invenção das vossas mentes sedentas de graça e do deslumbramento mitómano da primeira infância!
Um grande burburinho se gerou entre os que ouviram tal dislate. Quiseram bater-lhe, ou então que retirasse o que tinha dito, que pedisse desculpa.
- Quem achas tu que construiu a nossa cidade, mantém as estruturas fortes, afasta os nossos inimigos e assegura os fornecimentos de que a cidade precisa? - confrontaram-no.
- Fomos nós e os nossos avós que assim a moldaram; somos nós que a mantemos a funcionar com a eficácia possível. “Passeante invisível” é só uma expressão que reflete toda a nossa incapacidade de assumir que, em conjunto, conseguimos gerar obra com qualidades maravilhosas.
O jovem persistia no erro, mas, em breve, compreendeu que
(...)
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Por:
Joaquim Bispo
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