O tempo dos rebuçados
Era o tempo dos rebuçados e dos berlindes. Os dias corriam descuidados, com pouca relação uns com os outros. E, de repente…
O primeiro encontro foi como receber um bolso de rebuçados. A festa era de carnes, da matança do porco e respetiva comezaina. A família alargada habitual estava reunida em casa de um tio por este motivo. Segurar, matar, limpar e desmanchar um porco exigia o concurso de vários homens. E o trabalho de lavar as tripas na ribeira, preparar os recheios e encher com eles as farinheiras, as morcelas e as chouriças exigia o concurso de várias mulheres. Para também prepararem o banquete para todos aqueles adultos e respetiva miudagem.
Daquela vez, o tio convidou também uma família colateral, que não costumava estar presente neste acontecimento anual em casa de cada tio. E ela apareceu, linda e discreta. Devia ter mais um ano do que Orlando e era muito diferente das outras meninas que orbitavam o mundo dele. Delfina — esse o seu nome — era outro mundo. Um mundo de arranjo e delicadeza. Os cabelos — oh, os cabelos — caíam penteados, lisos, a terminar numa volta, sobre os ombros. Os olhos seriam castanhos como os cabelos? Eram suaves e sorriam. A compostura do vestido de golinha, apertado por um cinto do mesmo tecido, também tocou Orlando. E a graça e simpatia que irradiava deslumbraram-no toda a tarde.
Ninguém faz planos para se apaixonar, muito menos um menino de sete ou oito anos. Sabe que os homens e as mulheres se casam, mas não sabe muito bem porquê. E calcula que um dia também casará. Talvez por gostar de alguém.
Nas suas orações antes de adormecer, passou a lembrar e interceder por aquela criatura doce e bela por quem estremecia. O máximo de harmonia com ela vislumbrava-o numa atualização da estampa pendurada por cima da sua cama: ambos de mão dada na travessia de uma ponte frágil sobre um rio caudaloso, mas protegidos por um anjo-da-guarda.
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Ilustração: @RODOLFO.BISPO.77 |
Por aqueles dias, Orlando recebeu uns quatro ou cinco rebuçados. Logo decidiu que um seria para ela, para lhe oferecer, como prova de bem-querer. Por uma lamentável desatenção das forças celestes, porém, Delfina adoeceu. Orlando, de rebuçado no bolso, não encontrou a estremecida do seu coração nos dois dias seguintes.
No terceiro dia, no regresso à escola depois de almoço, tão alheado ia que, automaticamente, fez o que não queria: desembrulhou o rebuçado e meteu-o na boca. Chegou a sentir-lhe o doce. Espantado, desagradado consigo próprio, retirou-o da boca, como blasfémia. O rebuçado era para ela, estava prometido em intenção. Tinha de lho entregar, ainda que lhe apetecesse continuar a saboreá-lo.
Resolveu entrar na venda do pai de Delfina e confiar-lhe o rebuçado para que ele lho entregasse. Temia, no entanto, que algum cliente percebesse o enamoramento no seu gesto e fizesse algum comentário que o envergonhasse. Ganhou coragem e entrou, mas a venda estava vazia. Mesmo o pai de Delfina devia estar lá para dentro. Pensou chamá-lo, mas isso já ia além da sua coragem.
Deixou o rebuçado, embrulhado e um pouco agarrado ao papel, em cima do balcão de mármore e saiu em direção à escola. Não era isso que tinha idealizado, mas cumprira a promessa, tanto quanto conseguira.
No regresso, entrou na venda, mais uma vez deserta. O balcão estava limpo. Nem sinal do pequeno volume roliço do rebuçado. Teria Delfina chegado a recebê-lo? Era pouco provável, concedeu. Com certeza que o pai dela o tinha deitado fora, sem suspeitar da sua importância.
Quando voltou a vê-la, já tinha passado uma semana ou duas e o enamoramento, por falta de alimento, murchara. Casar devia ser muito mais difícil do que parecia.
Era o tempo dos rebuçados e dos berlindes. O que parecia importante num dia esquecia-se alegremente no dia seguinte. O futuro é que traria a compreensão do valor de cada coisa. Talvez.
Nota de redação: A partir deste número Joaquim Bispo passa a colaborar com o nosso jornal. No sentido de apresentarmos aos nossos leitores este nosso novo colaborador, a quem desde já damos as boas vindas, aqui fica uma breve biografia sua: Joaquim Bispo nasceu em Alcains em 1948, é licenciado em História da Arte pela FLUL, ex-técnico da RTP, reformado. Iniciou a escrita de ficção em 2007 e tem o Conto como género de eleição. Frequentou oficinas literárias, coordena um grupo de escrita desde 2015, publica mensalmente, desde 2008, na revista literária eletrónica Samizdat — http://www.revistasamizdat.com/ (num total de mais de 150 textos) — e, desde 2015, no seu blogue pessoal — http://vislumbresdamusa.blogspot.com/ —, publicações que divulga por uns milhares de endereços de e-mail. Recentemente, publica também mensalmente em quatro jornais regionais. Integra mais de setenta coletâneas resultantes de concursos literários dos dois lados do Atlântico.
Por:
Joaquim Bispo
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