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Edição de 31-03-2024
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    Arquivo: Edição de 31-03-2022

    SECÇÃO: Destaque


    TESTEMUNHO DE UM CIDADÃO UCRANIANO EM ERMESINDE SOBRE A GUERRA

    «Não tenho sombra de dúvida de que com a ajuda de Deus e do Mundo a Ucrânia vai vencer esta guerra»

    Fotos MANUEL VALDREZ
    Fotos MANUEL VALDREZ
    A invasão das tropas russas à Ucrânia há pouco mais de um mês é uma realidade que por estes dias causa preocupação, dor e revolta ao povo ucraniano. Não só aos que testemunham de perto o terror causado por esta guerra, como também aos muitos milhares que vivem espalhados pelo resto do Mundo e que diariamente acompanham angustiados e de “coração apertado” a situação na sua pátria. Portugal é a casa de muitos ucranianos, sendo que nesta altura a comunidade ucraniana é a segunda maior residente no nosso país, depois da brasileira. Enquanto que muitas centenas chegam agora, diariamente, a território português para fugir à guerra, outros estão aqui radicados há décadas, como é caso de Ihor Litynskyi, que há mais de 20 anos – 21 para sermos mais precisos – se encontra a viver em Ermesinde. Falamos com ele, conhecemos o sentimento que lhe vai na alma por estes dias, de estupefação, de preocupação e de revolta, mas também de fé e esperança de que a Ucrânia vai vencer a guerra e vai voltar a viver livre numa Europa unida.

    Ihor, ou Igor, como se pronuncia no nosso idioma, começa por recordar o fatídico 24 de fevereiro último, dia em que teve início a invasão russa ao seu país, tendo nessa manhã recebido um telefonema de uma irmã sua que reside em Espanha. A chorar, dizia ao irmão que a guerra tinha começado na Ucrânia, que a Rússia havia invadido o país por três lados diferentes, a norte, a leste e a sul. Questionava Ihor como iria o povo do seu país sobreviver, contando-lhe que o filho dela e a família tiveram de se refugiar na aldeia natal para fugir aos bombardeamentos. Ihor relembra que acalmou a irmã, dizendo-lhe que a guerra estava longe da aldeia natal da família, situada a cerca de 20 quilómetros de uma cidade chamada Drohobych, situada no distrito de Lviv. «Ouviram-se explosões a 30, ou 40 quilómetros, de Drohobych, noutra cidade, mas os meus sobrinhos e as crianças escaparam para a nossa aldeia, onde mora a minha mãe, porque a nossa casa tem um piso subterrâneo de betão, o que a torna mais segura. Depois, aquilo é uma pequena aldeia, sem indústria, e nós achamos que pode não ser objeto de bombardeamento», diz-nos Ihor, enquanto mais à frente nos fala de Lviv, «uma cidade belíssima, património da UNESCO. Seria um pecado terrível perder esta cidade, vê-la destruída. Espero que não aconteça».

    «SENTIMO-NOS TRAÍDOS PELOS RUSSOS»

    Ninguém esperava uma guerra com estas proporções, sobretudo porque muitos ucranianos viam os vizinhos russos como amigos, como irmãos, como nos conta Ihor.

    «Sentimo-nos traídos pelos russos, que pensávamos serem nossos amigos, nossos vizinhos, nossos irmãos. Eles são pessoas como nós e não podem fazer isto. Como podem matar pessoas inocentes? Que mal fez esta gente aos russos?», questiona este cidadão ucraniano de 58 anos, que considera esta atitude dos russos de gente que não é civilizada. «São uns bárbaros selvagens, cruéis, como se pode fazer uma coisa destas no século XXI? É insuportável! Tanta barbaridade neste tempo. Somos todos humanos. Todos crescemos num mundo humano e como é possível haver tanta desumanidade agora? Tanta selvajaria?», continua a questionar o nosso entrevistado ao mesmo tempo que frisa que as tropas russas estão a matar gente comum, crianças, mulheres, idosos, lembrando que este ato é um crime militar. Neste ponto fala-nos de alguns relatos horríveis que lhe vão chegando do seu país, como por exemplo, a fotografia de uma menina de oito anos que na sequência de um bombardeamento em Mariupol perdeu toda a família e ficou ainda sem um braço. «Esta menina ainda não sabe o que perdeu, pois nunca mais vai poder abraçar a mãe, além de que vai ficar para sempre sem uma mão», conta-nos com profunda tristeza Ihor, que mais à frente nesta conversa diz-nos que não acredita no que os seus olhos têm visto, em que cidades como Mariupol estão a ser completamente destruídas, sem que os russos deixem lá entrar comboios humanitários com comida, nem deixem as pessoas sair de lá. «É uma catástrofe».

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    «ESTA É UMA GUERRA PATRIÓTICA, SANTA»

    Ihor está há pouco mais de duas décadas em Portugal, como já referimos, começando por viver em Alfena e mais tarde em Ermesinde, onde reside atualmente.

    Com formação em economia agrónoma, Ihor tem, como já vimos, muitos familiares na Ucrânia. Mãe, irmãos, sobrinhos, sobrinhos netos. Tem falado com os irmãos, e conta-nos que eles, na aldeia natal, ainda não sentiram os problemas da guerra, desde logo porque estão ainda distantes do epicentro do conflito bélico, pese embora alguns dos homens da aldeia tenham já sido mobilizados para as forças militares que estão a defender o país. Com a mãe ainda não falou, «não sei como falar com ela, ela percebe tudo e eu percebo tudo o que ela sente. É uma mulher com boa formação, foi agrónoma». Apesar de a sua aldeia natal estar por estes dias a salvo, Ihor e toda a família estão naturalmente preocupados com a guerra, «porque é o nosso povo, é a nossa pátria». Afirma que esta é uma guerra patriótica, explicando-nos que desde pequenos os ucranianos são ensinados nas escolas de que a guerra patriótica é santa, «é sagrada, temos de defender a pátria custe o que custar. Tens de defender a terra da tua mãe». Nesse sentido, diz-nos que se soubesse que podia ser útil à sua pátria neste momento não teria a mínima dúvida em ir para lá, mas o problema é que sabe que pode não ser muito útil, pois a saúde não deixa, tendo em conta os seus problemas de visão.

    UM PADRE ORTODOZO SENSIBILIZADO COM

    O APOIO DE PORTUGAL E DO MUNDO

    O apoio que a generalidade do Mundo tem dado à Ucrânia tem sensibilizado este cidadão, que tem constatado de perto esta solidariedade para com o seu povo aqui em Portugal. Ihor tem trabalhado como voluntário nesta missão de apoio, na Igreja da Imaculada Conceição, no Porto, onde a comunidade ucraniana ortodoxa tem um espaço para celebrar as suas missas, e de onde têm sido enviados medicamentos, comida e muitas outras coisas para a Ucrânia e os refugiados deste país.

    «Portugal, um país tão distante da Ucrânia a ser tão solidário connosco, tem-me tocado muito», confessa este homem que ao longo da nossa longa conversa se mostrou uma pessoa de uma fé imensa, ou não estivesse ele ligado à igreja.

    Ihor é (igualmente) padre ortodoxo, formado em Teologia num seminário ortodoxo na área de Moscovo, e mais tarde na Universidade Gregoriana de Roma. Atualmente, é padre de uma pequena comunidade ucraniana em Famalicão, sendo que por estes dias tem celebrado algumas orações especiais na comunidade ortodoxa do Porto para com a sua Ucrânia, pois «todos sentimos dor pela nossa pátria, pelos nossos amigos, pelos nossos familiares, pelos nossos compatriotas que estão a sofrer».

    Ihor não se conforma que nos tempos atuais pudesse haver uma guerra como esta, embora diga que sempre percebeu que os russos nunca quiseram a independência da Ucrânia. «Eles pensam que nós fomos traidores, porque não queremos estar com eles, queremos ser independentes. Mas porquê? Somos irmãos. Sim, somos, mas cada um em sua casa. Para os russos nós somos os nazis, os fascistas, porque queremos ser ucranianos e não russos. Mas desculpe, nazis são aqueles que só reconhecem uma nação e os russos só reconhecem uma nação, que é a deles», opina Ihor, que nos explica ainda que na Rússia há a mentalidade de que «se tu és russo és de um nível superior, mas se não és, então não vales nada!».

    «COMO POSSO CONTINUAR A RESPEITAR A RÚSSIA DSEPOIS DESTA INVASÃO?»

    Ihor não imaginava que depois de tanto tempo após a desagregação da União Soviética a Rússia ainda não se conformasse com uma Ucrânia independente. «O tempo passou, e pensei que íamos ser vizinhos, mas sem guerra, que o Império Russo não ia renascer»

    Não compreende como um país irmão, com uma cultura semelhante à do seu país, com a mesma fé ortodoxa, com um idioma parecido, possa ter uma atitude destas. Perante isto, questiona como pode continuar a respeitar a Rússia, a sua cultura, confessando inclusive que gosta de algumas obras primas literárias russas, sublinhando que conhece bem a língua russa, tendo em conta que era a língua oficial da antiga União Soviética. Mas depois desta invasão, «como posso continuar a respeitar um povo que há mais de 20 anos tem um presidente que na verdade é um ditador que deixou esta guerra ser possível?».

    Por falar neste impensável conflito entre vizinhos, Ihor dá como exemplo a relação da Ucrânia com outro país vizinho, neste caso a Polónia, que no passado desencadeou guerras com o seu país, ainda nos tempos da União Soviética. Tempos em que os polacos não reconheciam a Ucrânia Ocidental como independente. «Mas foi no passado, fomos inimigos, mas agora não, hoje somos vizinhos e amigos e vivemos como pessoas civilizadas. Eles (polacos), são os nossos melhores advogados para entrarmos na NATO e na União Europeia. Dizemos que a Polónia são os nossos advogados no Mundo. Tudo mudou, mas a Rússia não quer mudar, eles querem conservar este mentalidade do Império Russo», opina.

    VOLTAR AOS TEMPOS DA UNIÃO SOVIÉTICA? NÃO!

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    O nosso entrevistado é da opinião de que Vladimir Putin quer reconstruir a União Soviética, «ele acha que é a missão dele, que nasceu para reconstruir o Império Russo», afirmando de seguida que o povo ucraniano não quer isso, pois «nós sentimo-nos europeus e não queremos voltar aos tempos antigos». Ihor viveu a sua juventude na União Soviética, e não quer regressar a esses tempos. E explica porquê: «Uma pessoa comum na União Soviética não podia entrar (facilmente) noutros países. Para andar na Polónia, por exemplo, era um problema grande, tínhamos de ter um membro da família lá para podermos entrar no país. A União Soviética era um país muito fechado. Não havia liberdade», diz, recordando ainda a primeira vez que visitou um país estrangeiro, no caso a Itália, contando como ficou maravilhado com o que viu e sentiu. «Amo a Itália, gosto da cultura, das pessoas, do modo de viver, e senti-me lá muito bem. Eu quero a Ucrânia um país como a Itália, livre, desenvolvido e se possível ainda melhor. Quero ser um cidadão do Mundo. Agora sou cidadão de Portugal, e é muito bom, posso viver aqui e sentir-me um homem livre, não um escravo. E na União Soviética sentiamo-nos escravos porque não sabíamos o que era ser livre, o que era viver num Mundo livre, sem saber o que é são os direitos humanos». O clima de tensão entre a Ucrânia e a Rússia não é recente, tendo-se acentuado nos últimos (cerca de) 10 anos por causa da península da Crimeia, que os russos anexaram em 2014. Questionado sobre se imaginava que tal tensão poderia dar azo à guerra que teve início a 24 do passado mês, Ihor diz que ao assistir ao que passava na televisão russa já se sentia este clima de tensão no ar, mas não queria acreditar que isto iria transformar-se numa guerra real. Fala numa propaganda russa contra a Ucrânia, uma propaganda que faz tudo para desumanizar os ucranianos, e na qual muitos russos acreditam. «Para eles passa a ideia de que não somos humanos, que somos nazis, fascistas. Que somos inimigos da humanidade e muita gente crê que isto é verdade. No entanto, muitos dos nossos serviços especiais quando ouvem as conversas das tropas russas com a família e estas lhes dizem que afinal nós somos pessoas normais, que não somos nazis, nem fascistas, as próprias famílias deles não querem acreditar nisso».

    Ihor esteve na Ucrânia pela última vez em dezembro de 2020, e quando lá esteve não imaginava que a guerra pudesse ser uma realidade, apesar da situação de guerra vivida no Donbass ou da ocupação da Crimeia pelos russos. A julgar pelo que viu na sua região natal, o nosso entrevistado viu uma Ucrânia cuja vida estava a melhorar, onde as pessoas viviam de uma forma normal e ninguém imaginava que a atual situação de conflito pudesse acontecer de facto. «Todos pensavam que a guerra era uma teoria, que podia acontecer, mas que não ia acontecer», diz.

    Quando questionado se acha que esta guerra pode terminar em breve na sequência de um entendimento entre as duas partes, Ihor como qualquer outro cidadão ucraniano desejava que o conflito acabasse «já hoje», mas infelizmente isso não vai acontecer na sua opinião. Recorda que as guerras na Ucrânia - na zona da Crimeia e na região do Donbass - começaram há mais de oito anos, e tiveram períodos de guerra intensa e depois de acalmia, mas não chegou efetivamente a paz. O problema, diz, é que a Ucrânia é um país com tropas pequenas e não quer invadir a Rússia, somente quer retirar os russos do seu território para poder reconstruir o país.

    Na opinião de Ihor o problema de um possível cessar fogo significa que a Rússia ficará com todo o território ucraniano que agora está a controlar, as forças militares russas ficam a controlar o território ucraniano, frisando que quer o povo ucraniano, quer o exército do seu país, não vão aceitar isso. «Queremos a Ucrânia como foi antes da guerra, há cerca de 10 anos e os russos já disseram que isso não é possível, eles têm escrito na constituição deles que a península da Crimeia é da Rússia, não é mais da Ucrânia».

    «COM A AJUDA DE DEUS E DO MUNDO VAMOS VENCER ESTA GUERRA»

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    Ao longo desta conversa, Ihor sublinhou por diversas ocasiões que a sua Ucrânia não pode perder esta guerra, «porque perder a guerra é igual a morrer. Não tenho sombra de dúvida de que com ajuda de Deus e do Mundo vamos ganhar esta guerra».

    «Temos de parar os russos, temos de afastá-los do nosso país e com a ajuda de todo o Mundo civilizado vamos renovar o nosso país. Esta é uma guerra patriótica, Deus está connosco, todo o Mundo está connosco, todo o Mundo mostrou esta unidade», opina, referindo que as sanções aplicadas pelo Ocidente à Rússia podem mais tarde ou mais cedo destruir economicamente aquele país. «E se o sistema financeiro russo cair por terra eles não terão dinheiro para continuar sempre a fazer a guerra. E aí a guerra vai acabar, com a ajuda do Mundo. Mas a Rússia é demasiado grande e não vai cair em breve, e por isso esta guerra ainda vai durar algum tempo», lamenta.

    Este cidadão ucraniano a residir na nossa cidade não sabe se estas sanções que estão a ser aplicadas à Rússia poderão demover Putin desta ideia de continuar a guerra, ou pelo contrário acentuar a revolta do presidente da Federação Russa. Sobre isto, Ihor, que no presente se encontra desempregado, diz que é difícil prever como se vai comportar uma pessoa «que não é normal», «uma pessoa que tem de ser isolada da humanidade», e cujo governo, que é totalmente dependente dele, pensa como ele, referindo-se a Putin.

    A este propósito explica que o presidente russo é proveniente de uma organização chamada Comité de Segurança de Estado, o KGB, uma organização de serviços secretos russos muito potente. «Por exemplo, se Putin morrer vão substitui-lo por outra pessoa parecida com ele. Talvez, não sei. No presente, o problema é ele, mas não só ele, mas também o “putinismo”, um sistema político que impera na Rússia. Muita gente na Rússia levou uma lavagem cerebral e acredita que ele tem sempre razão. Todos podem errar, mas eles, russos, não. Para os russos eles têm sempre razão».

    Ihor mostra-se ainda muito preocupado com a possibilidade de Putin ao pensar que pode não ganhar esta guerra vá usar armas nucleares, algo que seria catastrófico para toda a humanidade. Recorda a este propósito que na doutrina militar russa está escrito que podem ser usadas armas nucleares caso a Rússia sinta que a integridade do sistema político deles corre perigo. «Putin não é uma pessoa sã, ele é um fanático do Império Russo. E se vir que os planos dele vão cair por terra ele pode usar as armas nucleares», opina com profunda preocupação.

    (...)

    leia esta entrevista na íntegra na edição impressa.

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    Por: Miguel Barros

     

     

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