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    Arquivo: Edição de 30-06-2018

    SECÇÃO: Crónicas


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    Um livro na roda

    Entre o fim do século XV e o século XIX foi instituído e expandido o sistema da Roda dos Expostos também conhecido como Roda dos Enjeitados ou, simplesmente, "A Roda" que tinha como objetivo recolher recém-nascidos que, por "respeitos humanos" (1), as mães entregavam a Instituições de caridade ao invés de os abandonarem em qualquer sítio esconso. Fisicamente, era um "mecanismo em forma de tambor ou portinhola giratória embutido numa parede e construído de tal forma que quem expunha a criança não era visto por aquele (aquela) que a recebia" (2). Esse modelo de acolhimento foi muito praticado por toda a Europa, sobretudo a Europa Católica e levado à prática por instituições de caridade como as Misericórdias. As crianças ali permaneciam até aos sete anos se, entretanto, ninguém quisesse adotá-las. E depois? /…/

    Um livro é como um filho para aquele ou aquela que o escreveu e o fez publicar. Raro e anormal será o caso de uma mulher que não ame o filho que gerou assim como, mal comparando, para o autor o livro que escreveu ressalvando, obviamente, as diferenças naturais entre o que é humano e o que é, na aparência, só um objeto ainda que fruto do intelecto e do trabalho do seu autor. Por outro lado, a situação a que pretendo referir-me também é diferente quanto ao sujeito da ação: quem punha a criança na roda era a sua progenitora ou alguém a seu rogo enquanto, no caso que desejo expor, o agente não é o autor mas alguém que detinha a posse do livro. Vamos então à estória: certo dia, como vem sendo meu hábito, fui ao Mercado de Ermesinde fazer compras de frutas e legumes e recebi do vendedor habitual a informação de que havia um livro escrito por mim numa prateleira do piso superior daquela instalação. Fiquei muito surpreendido com a notícia não tanto porque a minha atividade literária fosse desconhecida mas pelo insólito da situação. Que eu era colaborador de "A Voz de Ermesinde" já era sabido pelo menos do Sr. Acácio outro dos vendedores daquele espaço que me falara do caso há tempos prova cabal de que o gosto pela leitura não é, como se poderia supor, exclusivo de pessoas de subido nível intelectual como demonstrei na crónica anterior a propósito do meu pai e da sua apetência pelos livros e pela leitura. Com certa frequência, encontro pessoas que referem com agrado as minhas crónicas. Era o caso do Quim, um bebedolas de quem a mulher se separou e vivia "ao Deus dará" por ruas e tascas da cidade e que, por gentileza do antigo dono do quiosque da estação, lia os meus escritos, pois esse Quim, sempre que nos encontrávamos, elogiava as crónicas que levavam o meu nome citando temas e frases que eu escrevera, o Sr. Pacheco que fazia a contagem da luz no tempo em que eu vivia em Águas Santas, o Sr. José da oficina que zela pelos automóveis da minha família, uma vizinha, o sogro de um amigo ou um conhecido recente que me identificou pela foto do jornal deixou de ser raridade há muito tempo. Prestes a perfazer um quarto de século de colaboração com "A Voz de Ermesinde", escrevi centenas de crónicas para este que é o mais representativo e duradouro órgão da imprensa regional. Voltando, todavia, ao caso do livro que foi notícia porque o seu autor era e continua a ser cliente do Mercado, causou surpresa porque os autores, tal como os santos costumam ser, colocados num pedestal e as suas obras expostas em locais apropriados, aqueles "templos do saber" que justificam a existência de um tipo específico de comércio. Não era o caso: o autor não é um santo nem um ser inatingível é um comum cidadão que vai às compras para alimento seu e da família. Estava longe, porém, de imaginar que um fruto do seu labor intelectual estivesse para ali arrumado junto com outros artigos de consumo doméstico. O coletivo da Junta de Freguesia, por sugestão de um de seus membros, em dia e mês que não sei precisar do ano de 2009, havia deliberado adquirir-me 25 exemplares como incentivo à produção intelectual na qualidade de cidadão da comunidade ermesindense. Interessado em saber que rumo estava destinado a esses livros, foi-me dito que seriam enviados para escolas e outros locais relacionados com a cultura. A ideia pareceu-me excelente e talvez tenha sido esse o destino da maioria dos exemplares. Com grande dose de probabilidade, o volume que foi parar à "roda" do mercado será o que a Junta de Freguesia destinou para si mesma. Se assim foi, espero que venha a ocupar um lugar mais consentâneo com a sua natureza de bem cultural.

    (1) "Por respeitos humanos" - expressão utilizada na linguagem religiosa para significar a vergonha que alguns cristãos sentem em relação ao mundo que os cerca por praticarem a sua religião.

    (2) "mecanismo em forma de tambor ou portinhola giratória embutido numa parede e construído de tal forma que quem expunha a criança não era visto por aquele (aquela) que a recebia..." - Wikipédia, a enciclopédia livre

    Por: Nuno Afonso

     

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