Subscrever RSS Subscrever RSS
Edição de 31-03-2024
  • Edição Actual
  • Jornal Online

    Arquivo: Edição de 30-09-2016

    SECÇÃO: História


    foto
    A primeira Guerra Mundial tem cem anos (19)

    Diário de um Prisioneiro de Guerra (parte 2)

    No período em que esteve preso na Alemanha, logo após a Batalha de La Lys, o Tenente-Coronel João Carlos Craveiro Lopes escreveu um "diário", onde narra as complicações e sofrimentos então vividos por si e pelos seus camaradas de armas. É desse "diário", que já começámos a explorar na edição anterior desta rubrica, que retiramos muitas das informações que abaixo transparecem neste artigo. Hoje referimo-nos à difícil correspondência entre os prisioneiros e as suas famílias em Portugal, à carência alimentar dos campos de prisioneiros, à forma como eram apoiados em caso de doença, ao relacionamento entre os soldados alemães e os prisioneiros portugueses e ainda ao perfil psicológico daqueles que se viam privados de liberdade e muito ansiosos quanto ao incerto futuro imediato.

    OFICIAIS PORTUGUESES NUM CAMPO DE PRISIONEIROS, A LAVAREM A LOUÇA E OS TALHERES DEPOIS DE UMA POBRE REFEIÇÃO
    OFICIAIS PORTUGUESES NUM CAMPO DE PRISIONEIROS, A LAVAREM A LOUÇA E OS TALHERES DEPOIS DE UMA POBRE REFEIÇÃO
    Recordamos que o Tenente-coronel João Carlos Craveiro Lopes, quando foi feito prisioneiro dos alemães, durante a Primeira Grande Guerra, tinha 47 anos. Nos duzentos e dez dias em que conheceu a condição de prisioneiro, como oficial do exército português, passou ao papel aquilo que era o dia-a-dia dos prisioneiros portugueses que pôde testemunhar na primeira pessoa.

    Na passagem que escreveu no seu diário, relativa ao dia 25 de maio de 1918, mostra-se preocupado pelo facto de já terem passado mais de 45 dias sobre a data em que foram feitos prisioneiros e as suas famílias nada saberem deles, se foram mortos ou se ainda estão vivos!?

    De acordo como os direitos que lhes reconheciam, enquanto prisioneiros, podiam escrever duas cartas e quatro postais por mês, que seriam enviados através do comité da Cruz Vermelha que tinha sede em Lausanne (Suíça).

    Mas as cartas não seguiam de imediato para o seu destino, tinham que passar ainda pelos filtros da censura, que podia deixá-las passar ou não. Assim, as famílias dos soldados que eram prisioneiros dos alemães sofriam muitas vezes de uma grande ansiedade por não saberem a situação real dos seus entes queridos.

    No caso do Tenente-Coronel João Carlos Craveiro Lopes apenas teve notícia da família em 14 de julho de 1918, mais de três meses após o seu aprisionamento.

    Nessa altura já se encontrava noutro campo de prisioneiros, fora transferido no dia 4 de julho para o campo de Ratzeburg. Acerca da alimentação naquele campo, Craveiro Lopes, em nota redigida a 8 de julho escreve que "a alimentação é fraquíssima", mas reconhece que não é por maldade dos soldados que mandam e os guardam no campo mas por efetiva carência de géneros alimentícios: "Mas eles não têm nada para nos dar".

    Quando aparecem encomendas de produtos alimentares para outros prisioneiros que entretanto já saíram campo, os que mandam dão ordens para serem distribuídos pelos prisioneiros que aí estão. Assim aconteceu com encomendas "chegadas para prisioneiros romenos, num momento em que estes já [tinham sido] transferidos para outro campo, são distribuídas aos portugueses (23 de Julho) por ordem do comandante do campo. E sempre são umas 100 caixas de bolachas".

    Alguns dias depois, no seu diário, Craveiro Lopes dá conta de mais um pequeno "mimo" (31 de Julho): "Lavei-me com sabonete, o que não fazia há 114 dias!"".

    Já no que respeita aos cuidados de saúde para os prisioneiros, este oficial diz que eram bem melhores do que aqueles que havia no Corpo Expedicionário Português (CEP), nomeadamente no que diz respeito aos internamentos hospitalares.

    A este propósito, do que redige a 3 de maio, resulta uma interessante comparação entre os internamentos que tinham lugar em hospitais portugueses e aquele que agora referia num hospital alemão, e que lhe havia sido transmitido por um oficial que passou por essa experiência: "Veio do hospital o […] que disse ser-se ali muito bem tratado. Médicos e enfermeiros são atenciosos.

    Comida é boa e abundante. Nos hospitais do CEP passava-se fome e até havia piolhos. Dois capitães médicos, chefes do Serviço de Saúde da B., me disseram ao voltarem do hospital: "Comandante, por pior que se ache, não baixe aos nossos hospitais"".

    A rotina e a relação com as autoridades alemãs

    Este oficial português, relativamente ao tempo em que foi prisioneiro dos alemães, reflete também sobre as relações interpessoais que se foram desenvolvendo entre os prisioneiros e os soldados alemães que estavam em serviço no campo onde se encontrava.

    Globalmente, fica no diário a ideia de que se trata de um tratamento correto, por parte dos alemães. Relativamente ao 1.º campo de prisioneiros, Craveiro Lopes descreve a sua rotina quotidiana "com muitas horas de sono, deitar e despertar cedo, lavar e remendar roupa, ir à missa e… passear pelas redondezas".

    Um pouco mais adiante, na sua narrativa, o oficial preso informa que os oficiais portugueses estão a pensar na organização de um orfeão e de uma biblioteca. No seu diário chega a fazer referência ao título de um livro que leu durante o período de cativeiro: "L'Oeuvre", um romance de Émile Zola, publicado em 1886.

    Já no que se refere ao tratamento pessoal que tinham para com os oficiais portugueses, Craveiro Lopes afirma que "a alguns oficiais os soldados pediram as polainas, os abafos, ou tiraram alguns objectos, diziam eles, [que eram] para 'souvenir'".

    Mas também é verdade que, pontualmente, houve algumas queixas sobre uma ou outra "violência" praticadas por soldados alemães contra os prisioneiros portugueses. Relativamente ao 2.º campo onde esteve, alude a algumas queixas apresentadas sobre "incorrecções de um alferes".

    Da observação feita durante 23 longos dias, à maneira como são tratados os prisioneiros de guerra na Alemanha, concluí que "é absolutamente falso tudo quanto se diz na imprensa com respeito a maus tratos. Feito prisioneiro passei por numerosas colunas de tropas de infant[taria], engenharia, artilharia e que apoiavam o avanço alemão e nem uma chufa, um insulto nos era dirigido".

    Portanto, este nosso oficial prisioneiro desmente completamente o mito que se instalou entre os Aliados de "que os alemães não fizessem prisioneiros e fuzilassem os inimigos que lhes caíssem nas mãos". Afirma, antes, o seguinte: "nos campos fomos bem tratados, não havendo grandes comodidades (...) A comida é pouco abundante, mesmo para quem passa uma vida inactiva, como nos sucede. As camas são razoáveis e as roupas são limpas e desinfectadas."

    O moral e a disciplina são outros problemas que mexem muito com um soldado, e ainda mais quando ele está na condição de prisioneiro.

    Entre os fatores que mais contribuíam para surgirem problemas disciplinares entre os prisioneiros de guerra, Craveiro Lopes, apresenta estes dois: o jogo a dinheiro e os roubos. O facto dos prisioneiros não terem nada para fazer, a longa falta de notícias das respetivas famílias e a incerteza quanto ao futuro imediato geravam grande impaciência e ansiedade no perfil psicológico destes homens. Alguns destes problemas parecem ter conhecido algumas melhorias, quando o autor do diário presidiu à Comissão de Prisioneiros, que fundou precisamente com o objetivo de melhorar a vida daqueles que ali se encontravam consigo.

    Por: Manuel Augusto Dias

     

     

    este espaço pode ser seu Este espaço pode ser seu Este espaço pode ser seu
    © 2005 A Voz de Ermesinde - Produzido por ardina.com, um produto da Dom Digital.
    Comentários sobre o site: [email protected].