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Edição de 31-03-2024
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    Arquivo: Edição de 31-03-2016

    SECÇÃO: Crónicas


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    Evolução ou involução

    Escrevia António Gedeão no poema Pedra Filosofal: "…que sempre que um homem sonha/ o mundo pula e avança…" Verdade incontestável que necessita, no entanto, de um reparo: o avanço é desigual e não linear mostrando-nos também que nem sempre a realidade corresponde ao sonho, campo privilegiado da poesia. Os aspetos materiais da cultura, consubstanciados nas ciências, nas técnicas e no conhecimento em geral, têm evoluído sem solução de continuidade num ritmo a cada dia mais rápido enquanto aspetos não materiais como os valores que enformam a civilização de que somos herdeiros e usuários progridem menos e, com frequência, registam lamentável e perigoso escolho.

    Os avanços científicos refletem-se, com especial incidência, no campo da saúde, o bem mais precioso que temos, permitindo um cada vez mais alargado espetro na prevenção e no combate às doenças e alongando progressivamente a expectativa de vida humana. Males que, não há muito, representavam uma iminente, quase datada condenação à morte para os que por eles eram acometidos estão, hoje, sob controlo se não ultrapassados. Há décadas, nem sequer se lhes pronunciava o nome, fosse por desconhecimento, por temor ou porsuperstição. Era uma "ferida ruim", foi "um ar" e outras, que os próprios médicos não revelavam aos pacientes para, supostamente, não os atemorizarem. Nos dias que correm, nomeiam-se sem baixar o tom ou revelar tremor na voz e enfrentam-se com certa naturalidade: é um cancro (tumor), foi um AVC sigla de Acidente Vascular Cerebral ou "derrame" de vasos sanguíneos cerebrais por entupimento ou rompimento. A crescente informação sobre sintomas de determinadas doenças e hábitos negativos, os atos de prevenção como consultas médicas regulares, análises clínicas, exercício físico e outros têm contribuído muito para que elas não cheguem a acometer-nos ou, caso tal aconteça, possamos atalhar-lhes o passo. Os tratamentos evoluíram muito, assim como os tempos de acompanhamento e de recuperação. Graças a outros avanços técnicos e científicos paralelos, as pessoas assumem-se, cada vez mais, como sujeitos ativos da sua saúde e bem-estar. Os mass-media, mormente a rádio e a televisão, que a generalização da energia elétrica consentiu, têm levado aos sítios mais recônditos conselhos e ensinamentos de vital importância para as pessoas que aí habitam, criando-lhes novos hábitos e atitudes. Generalizaram-se os cuidados preventivos de higiene pessoal e familiar com a construção de quartos de banho nas habitações. Importa lembrar que, há pouco mais de meio século, ainda havia comunidades que consumiam água das "fontes de mergulho" totalmente desprotegidas de contaminação, um ou dois fontanários serviam grande parte dos moradores e só mais adiante, é que se operou a canalização da água desde um depósito (mãe d'água) até às casas particulares e que as habitações eram construídas sem instalações sanitárias. Pouco a pouco, as mulheres ganharam o hábito de se fazerem acompanhar por médicos ginecologistas e deixaram de ter seus filhos nas próprias residências para procurarem acolher-se aos hospitais ou às maternidades reduzindo em muito os óbitos pré-natais, natais e pós-natais. A evolução tem sido notável, permitindo a Portugal situar-se em 3º lugar mundial, em 2015, no indicador de taxa de mortalidade infantil abaixo dos 5 anos. Esse dado consta de um relatório da Unicef que refere uma melhoria de 76% nos últimos 25 anos. Portugal passou de uma taxa de 15 crianças mortas antes dos 5 anos por mil habitantes em 1990 para somente 4 crianças por mil habitantes em 2015, a par da França, Alemanha, Holanda e Espanha ocupando o 3º lugar. Em 1º lugar surgem o Luxemburgo, a Islândia e a Finlândia com 2 crianças mortas por mil nascimentos nesse mesmo ano, enquanto o 2º lugar é ocupado por sete países entre os quais estão a Noruega, a Suécia, a República Checa e a Eslovénia.

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    Se refiro os progressos havidos no domínio da saúde, forçoso é dizer que são concomitantes aos que se registam em todos os demais setores da vida coletiva, na engenharia, na arquitetura, na economia, nas tecnologias nomeadamente a da informação, na educação e formação cultural, bem presentes no modo de vida coletivo em comparação com épocas passadas.

    Porém, se a evolução nas condições de vida é visível consentindo maiores comodidades pessoais e sociais, já outro tanto não acontece no ajustamento ao novo quadro em que nos movemos. A redução da mortalidade infantil vem a par da drástica redução da natalidade. A aproximação entre os modos de vida nos meios urbanos e nos meios rurais determinou uma redução semelhante no que se refere à natalidade entre as famílias da cidade ou da vila e as famílias da aldeia. O número de filhos por família que, nos anos 50 do século passado, raramente ficava em menos de três mas atingia, com frequência, quatro, cinco ou mais, passou, duas décadas mais tarde, para um ou dois, sendo bastante raros os casais que optavam por descendência mais numerosa. Nas aldeias onde a atividade agrícola tradicional exigia muitos braços, face à mecanização essa exigência perdeu grande parte do sentido, ultrapassada pela certeza adquirida de que o futuro dos filhos passava pelo prosseguimento dos estudos ou pelo anseio de uma vida melhor no estrangeiro. Nas aldeias, a população sofreu uma redução drástica.

    Ainda em relação à célula família, que sempre se pautou pelos princípios da religião católica que defendia a indissolubilidade do casamento e o fortalecimento dos laços entre o casal e entre pais e filhos, entrou em crise, daí em rutura, criando novos e graves problemas, não apenas familiares mas também sociais. Famílias desfeitas, refeitas e contrafeitas acarretaram instabilidade no tecido social, mais intranquilidade psicológica e sociológica e distúrbios comportamentaisagravados nos mais velhos e nas crianças. Neste quadro, a sociedade depara-se com situações complexas, difíceis de gerir e com desfecho muitas vezes traumático e mesmo trágico. Os valores tradicionais não merecem o respeito que norteou sucessivas gerações e parece não caberem no quadro de referências da atualidade. A vida e a dignidade inerentes ao ser humano são frequentemente, menosprezadas e violadas. Atente-se nos casos, cada vez mais frequentes, de violência entre jovens mesmo no período de namoro, outrora considerado idílico, e na forma como casais jovens e não tão jovens "resolvem" as suas diferenças sem o mínimo respeito pelo outro, situações em que impera, habitualmente, a "lei do mais forte" chegando a extremos, até há pouco, inimagináveis. O mesmo sucede em relação aos mais velhos, considerados imprestáveis, indesejados nas casas dos seus filhos ou até na casa em que estes foram criados, esbulhados das magras pensões de reforma e largados em sítios indignos a troco de poucos vinténs, sítios esses que proliferam como cogumelos na podridão e onde são mal tratados e maltratados. Outro tanto acontece em relação às crianças, vítimas de "bulling" nas escolas que frequentam ou na casa dos pais onde um padrasto ou uma madrasta sem alma lhes impõe castigos inadmissíveis em sociedades que se dizem evoluídas. Inúmeras outras situações poderiam ser aqui aduzidas mas o espaço desta crónica não consente.

    Por: Nuno Afonso

     

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