Subscrever RSS Subscrever RSS
Edição de 30-04-2024
  • Edição Actual
  • Jornal Online

    Arquivo: Edição de 29-02-2016

    SECÇÃO: Crónicas


    foto

    Relações afetivas

    A experiência pessoal diz-nos que as relações afetivas, além daquelas muito especiais que a consanguinidade sacraliza, sãoforjadas não só pela geografia física como, acima de tudo, pela geografia social. Entretecem-se num certo espaço e alimentam-se com trocas linguísticas, lúdicas e de outra índole, continuadas e o mais possível frequentes. Mesmo quando essas trocas ficam suspensas, por afastamento prolongado de algum ou alguns dos membros do grupo, o espírito que as vivificou persiste na lembrança dos que ficaram, que falam dos ausentes e procuram saber novasdeles junto dos seus familiares mais próximos, porventura também na lembrança dos que foram viver para outros lugares no país ou no estrangeiro. O sentimento de pertença a uma comunidade é de tal modo forte que, mesmo fixando morada permanente alhures, os que emigram guardam-no consigo e mantêm acesa a chama junto dos familiares por lá nascidos e criados, enquanto as circunstâncias o permitirem e outras urgências não sobrepujarem a vontade. A expressão "longe da vista, longe do coração" nem sempre se coaduna com a realidade,sobretudo em comunidades de pequena/média dimensão onde todos se conhecem e entreajudam. Noutras épocas uma carta, agora um telefonema, uma mensagem ou fotografia no Facebook, eram/são formas de reavivar as brasas escondidas na cinza da distância.

    A vida humana não é um rio que, algures no tempo, abriu caminho por entre montes e vales mas que, salvo raríssimas exceções ditadas por fenómenos naturais,manteve o curso que traçou. É certo que Francisco I, rei de França, pensou em desviar o leito do rio Loire quando quis construir o castelo de Chambord, um dos mais famosos daquele vale paradisíaco, nas primeiras décadas do século XVI, mas foi dissuadido de levar o sonho por diante com base em argumentos que, hoje, diríamos ecologistas. Qualquer tentativa idêntica que não tivesse preocupações quanto aos habitats em torno de um rio teria, inevitavelmente, redundado em sérios problemas ambientais. Mas quem alterou o rumo discursivo foi o autor deste arrazoado, dois períodos atrás. Retomemos, pois o fio do pensamento que tínhamos enunciado e deixemos que os rios sigam ao seu destino. A vida humana tem uma lógica diversa ditada pela própria natureza. O homem é naturalmente inquieto, com muita frequência insatisfeito, muda de rumo consoante a necessidade e/ou a ambição e sempre que as condiçõeslho consentem.Ao longo dos milénios, a História registou inúmeras movimentações humanas, individuais ou de grupos,à procura de uma vida melhor, emdiásporas diversas. Fixaram-se noutras paragens, integraram-se em novas sociedades mas transmitiram aos descendentes elementos culturais trazidos da terra de origem que persistem de geração em geração. É sabido que, em territórios longínquos, subsistem comunidades que guardam tradições, hábitos, linguajares, apelidos de família, às vezes nomes das terras de origem dos seus distantes antepassados que, orgulhosamente, referem. No que respeita a Portugal, diz-se - ressalvando algum possível exagero! - que não há lugar no mundo onde não se descubra um português ou seu descendente assumido, quantas vezes já na enésima geração. Do Brasil, para onde o fluxo migratório foi mais intenso e prolongado, ainda chegam novas de orgulhosos netos, bisnetos, trinetos… de cidadãos lusos, vivos ou já desaparecidos, que não esquecem a sua origem, nomes das famílias de que procedem, princípios que deles receberam e manifestam especial carinho que, muitas vezes, os leva a visitar lugares e parentes que neles se mantêm. As redes sociais são, atualmente, veículo de aproximação imediata, possuem o condão de trazer até nós ecos de longes terras, primeiro passo que conduzirá - quem sabe? - a uma visita ao lugar onde nasceram os seus ancestrais. Muitos de nós já protagonizámos ou tomámos conhecimento de casos desses.

    Quem deixava o torrão natal à procura de vida melhor fazia uso dum capital consubstanciado, acima de tudo, em virtudes de trabalho, seriedade, resiliência, tenacidade, espírito de iniciativa, teimosia q.b.. Enfrentando vicissitudes diversas, ultrapassava obstáculos materiais significativos, economizava quanto podia objetivando uma situação económica mais favorável.Mês a mês, grão a grão, alguns anos depois tinham acautelado um pecúlio capaz de fundamentar esperança em estabelecer-se. O capital ainda não seria suficiente para montar um negócio mas era tempo de fazer sondagens, estabelecer contactos com possíveis parceiros, solicitar empréstimosa compatriotas conhecidos e dispostos a ajudar, mediante pagamento de juros correntes, se o projeto fosse credível. Recorrer à banca não era opção, devido a condições desfavoráveis por inadequação das entidades bancárias da época no apoio ao pequeno comércio. Os portugueses entreajudavam-se bastante e era essa força que impulsionava as suas iniciativas empresariais.

    foto
    Muitos brasileiros, mormente os que chegavam do nordeste às grandes metrópoles sem referências de conterrâneos abonados aí residentes que lhes pudessem "dar a mão", aqueles que vinhamdas periferias dessas cidades, nomeadamente do Rio de Janeiro e de S. Paulo, ou de comunidades pobres instaladas nos morros que sofriam dupla rejeição por racismo e desconfiança,ficavam surpreendidos com a rápida subida dos patrícios (1) enquanto eles não iam além de sofríveis empregos sem animadora perspetiva de futuro. Visto que o pequeno comércio alimentar (cafés, bares, restaurantes, padarias, confeitarias, açougues…) na esmagadora maioria, tinha os portugueses como protagonistas, era frequente escutar comentários do tipo:

    - Chegaram aqui faz pouco tempo, com um par de tamancos ao ombro (2), e já estão montados na grana! - exclamavam não sem um travo de inveja.

    Não entendiam e os visados não tinham interesse em justificar tão rápida ascensão.

    A emigração para a França, o Luxemburgo, a Alemanha e, mais tarde, a Suíça teve caraterísticas diferentes. A disponibilidade e os pressupostos morais dos nossos emigrantes mantinham-se, no entanto a possibilidade de ascensão económica e social era diversa e não se vislumbre na afirmação qualquer juízo de valor. A partir de 1960, registaram-se vagas sucessivas de portugueses em busca de melhores condições de vida. Predominavam os jovens, mas também homens e mulheres de meia-idade arriscavam viver em países de línguas e costumes diferentes, ganhar lá fora o que não conseguiam obter na sua terra. Em relação aos que, antes, tinham atravessado o Atlântico, as condições eram diferentes: iam trabalhar, sobretudo, na construção civil ou em serviços para os quais não era requerida especialização, tinham mais possibilidades de emprego e salários bem mais elevados do que em Portugal e podiam vir, anualmente, gozar as suas vacanças (3), em geral no verão, ou,em situações especiais, noutra época do ano como o Natal.

    Quer os que atravessaram o oceano, quer os que permaneceram no espaço europeu alimentavam o desejo de, mais tarde, regressar à terra que os vira nascer. Alguns compraram ou edificaram casas e adquiriram propriedades, alimentando sonhos de criança, ansiavam pelo dia em que o pudessem fazer em segurança. A uns como a outros poderia aplicar-se a expressão criada pelo poeta Alexandre O Neill:

    Há mar e mar

    Há ir e voltar.

    Porque essa era a ambição de todos os que partiam, por terra ou por mar: voltar.

    (1) - patrícios - essa era a denominação, algo depreciativa,que os brasileiros davam aos portugueses.

    (2) - de tamancos aos ombro - estereótipo do português pobre que vinha fazer a sua vida no Brasil. Vinha descalço, com os tamancos ao ombro.

    (3) - vacanças - forma aportuguesada da palavra francesa vacances (férias).

    Por: Nuno Afonso

     

    Outras Notícias

    · Xiripitim

     

    este espaço pode ser seu Este espaço pode ser seu Este espaço pode ser seu
    © 2005 A Voz de Ermesinde - Produzido por ardina.com, um produto da Dom Digital.
    Comentários sobre o site: [email protected].