Xiripitim
Sorria a jovem que no final de uma refeição me deixava na mesa Xiripitim (em opção com ou sem álcool) que era oferta da casa e poderia acompanhar junto ao cafezinho caso fosse a minha escolha para fecho daquele momento de retiro. Olhei-a e pensei - ora aqui está um excelente título para o desafio da escrita de uma reflexão que lentamente ia tomando forma na minha cabeça, ainda mais que vinha acrescentada de um sorriso encantador. Ainda estávamos em Janeiro mas precisava preparar o meu TPC de Fevereiro. Para onde quer olhasse já via montras cheias de corações e decorações apelativas ao romance (mesmo que destituído de paixão) e daí ia emergindo um excelente mote sobre o que dissertar.
Essas imagens que proliferavam por onde passava, intuitivamente levavam-me a lembrar uma jovem que dois anos atrás tinha passado o dia de S. Valentim fora do seu país e fora do amor, que afinal não tinha sido. Dizia-me que 14 de Fevereiro, o "dia dos namorados" era um dia depressivo para quem é só, de amor. Eu, lembrando-a e ao seu estado de tristeza em tempos de agora também já esperava que este dia corresse rápido. Ao mesmo tempo dava-me conta da força do Marketing , que tem também o seu lado devastador - quase somos "empurrados" para encontrar alguém e caber dentro dos conceitos apelativos que criam, dentro dos tamanhos esbeltos dos seus modelos de estilo que por vezes levam a sacrifícios extremos pois pensamos que se nos "enfiarmos lá dentro" tudo será um "mar de rosas".
Afinal e infelizmente não precisei chegar ao dia de S. Valentim para perceber que o problema não era só a força da publicidade e marketing que nos colocava numa situação em que nos sentíamos "fora da caixa". Em episódio de urgência deixava no hospital a pessoa que o tempo transformou na minha companhia - um pai. Nos dias em que o hospital foi a sua casa, terminava a visita e já com a noite a cair, à porta daquele edifício olhava os semáforos que existem em frente e pensava em lugares vazios que ia e tinha que aprender a enfrentar. Questionava-me: "que destino vais tomar agora?". Afinal a mãe natureza é sábia e coloca-nos "sensores" que acionam mesmo sem nos darmos conta disso. Seguimos o nosso instinto que conduz a lugares onde, por bocadinhos, nos sentimos "em casa".
Na escolha do primeiro dia tive sorte por encontrar um lugar desses. Aproveitei o tempo desse dia e os que se seguiram para pensar com o coração mas não me esquecer de fazer a raiz quadrada com a razão. Fiz backup e voltei à check-list mental que por vezes me esqueço de fazer. Na perda de um amor, ou uma relação o mais aproximada possível desse sentimento, não é imperativo a sua substituição para suprir falta ou dor. Temos mesmo que estar atentos aos "semáforos" e evitar substituições ou emendas que podem sair pior que os sonetos. A solidão inicial dói, mas depois o tempo amortece e torna-nos mais racionais e atentos. Aprendemos a recauchutar, driblar, e fintar os sintomas que sabemos "não trazem com eles coisa boa" para o estado de espírito do nosso "eu".
Transeunte da vida, habituando-me a percorrê-la com um pé do seu lado de cá e outro do seu lado de lá, cada vez mais me apego aos transportes públicos para me mover. Há tempos atrás dava-me conta que afinal não eram só os "outros" que os usavam para fintar a solidão. Eu também usava esta artimanha muitas vezes. Aprendi a deixar de estar dependente do toque de um telefone, invadir o espaço dos outros em lares de padrões diferentes dos meus, perder tempo a lamber feridas ou lamentar frustrações. Já tinha homenageado à minha maneira a vertente útil deste meio transporte mas agora associo-lhe o lado social e dedicado às pessoas que se entretêm a passar o tempo a circular neles. Mudar de paragem e se não escolherem o mesmo caminho de regresso, mudam de rota e chegam por outro lado, mas chegam - menos sós e até se calhar mais ricos de conteúdo por uma conversa interessante ou um conhecimento que... nunca se sabe!
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Tela de Claude Monet, Les Promeneurs, 1865 |
De mente desperta para um mundo que pula e avança, mas desatenta de tantas outras coisas foi muito tarde que consegui explicação porque é os autocarros das tardes de Domingo e feriados se enchem de pessoas na sua grande parte sós, madurinhas e aperaltadas para a "festa". Vão dançar. Ao longo das paragens vão entrando outras que afinal ali fazem o seu checkpoint, com pessoas amigas que têm os mesmos hábitos e em grupo lá vão catitas e felizes. Um dia falava com uma senhora que me explicava os amores e desamores que por lá se encontram, nas salas onde se baila ao som de rumbas, balsas e passos dobles. Não sendo este o formato que se adapta a mim, cada dia que passa tento não me esquecer de nunca julgar quem por ali anda e muito menos matar-lhes o sonho que percebi que mesmo pelo adiantado da idade ainda acalentam de não terminarem os seus dias sozinhas.
História pública e que conheça chegada a meu conhecimento por um amigo inexcedível e imprescindível - o meu computador, onde "contos de fadas" destes acontecem conforme me apercebi, recordo sempre o de Edith Piaff. A menina que nasce e cresce no infortúnio até que desabrocha o virá a ser o seu maior tesouro - uma voz de timbre único. Léo Ferré, a "uma cantora morta" dedicava-lhe as seguintes palavras: "Tu tens nome de pássaro e tu cantas como cem. Como cento e dez mil pássaros que têm a garganta em sangue". Cantava a dor a que a vida não a tinha poupado com perdas irreparáveis como foi o de enterrar uma filha, uma saúde frágil e volatilidade que a transformava numa "saltimbanca" sentimental.
Contudo, esta mulher franzina já em fase madurinha, não partia deste mundo sem ter o seu momento de "Romeu e Julieta". Um homem grego (20 anos mais novo do que ela) fez dela a sua "musa", num sentimento tão forte que atravessou a própria vida, juntando-se-lhe 7 anos mais tarde, depois de lhe ter pago todos os seus impostos, dívidas contraídas com vícios e doenças deixando-lhe do lado de cá a dignidade do nome dela e do seu próprio ao calar a opinião pública que sempre o tinha rotulado de "gigôlo". São efetivamente difíceis algumas opções de vida de pessoas que gostam de viver fora de quadrados, círculos, hexágonos e por aí fora, com desfechos que nem sempre são os mais felizes.
Será recomendável ter-se os pés muito bem assentes na terra. A vida faz a parte dela mas é fácil que a própria solidão, o simples "fazer ver" ou ainda a necessidade de proteção pode transferir-nos para sensações que podem ser muito voláteis, iludindo como "presente" coisas e/ou pessoas que não levam a qualquer futuro e nos fazem saltar para dentro das tais figuras geométricas cujos interiores lhes desconhecemos, fechando-se atrás nós portas de cadeados que estão por dentro, fechados a 7 ou mais chaves, que nos ficam fora de acesso. Esta dificuldade de nos deixarmos voar por qualquer tipo de sopro, convencional, traz com ela o risco de conduzir a um ceticismo que reduz substancialmente aquilo que envolva qualquer tipo de laços, quer tenham ou não abraços - um jogo de perícia, sem naipe viciado, onde a "sorte" tem fator primordial pois nem sempre vale a mestria do jogador.
Ao longo da ponderação que me acompanhava enquanto o calendário se aproximava rapidamente do 14 de Fevereiro, depois de já não precisar um "ponto de paragem" no hospital e sempre com um "um pé do lado de cá e um pé do lado de lá", resolvi "furar esta data" e na vez de me resguardar em casa fiz uma investida sozinha pelo misticismo deste dia, colocando-me no papel da jovem que representa uma geração mais do começo em formas diferentes de amores e desamores. Percebi que nem ela, nem pessoas de recomeço (como poderia ser o meu caso) estavam sozinhas. Olhando enxergamos que existe espaço para todos, num dia que afinal é só mais um dia.
Neste dia, que afinal era só mais um dia, com a companhia do meu amigo computador percebi que a vida continuava a cuidar dos que sentem a generosidade da sua dádiva e isto porque o tal "sensor" acionava de novo e intuitivamente voltava a colocar-me em espaços onde sei encontrava os sorrisos e o calor humano que me faziam "sentir em casa", mesmo batendo a soneca que acordava o meu amigo computador, quando lhe batia com a cabeça. Na caminhada de regresso gostei da sensação de não abdicado do meu "eu" e apercebi-me que ainda bem para mim que não preciso de nenhum motivo especial para ser feliz. Bastam-me pedacinhos de ternura que colho aqui e ali. Deixo-os brincar no meu coração e por agora é isso a minha felicidade, quer haja Xiripitim, ou não.
Por:
Glória Leitão
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