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    Arquivo: Edição de 29-02-2016

    SECÇÃO: Crónicas


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    Xiripitim

    Sorria a jovem que no final de uma refeição me deixava na mesa Xiripitim (em opção com ou sem álcool) que era oferta da casa e poderia acompanhar junto ao cafezinho caso fosse a minha escolha para fecho daquele momento de retiro. Olhei-a e pensei - ora aqui está um excelente título para o desafio da escrita de uma reflexão que lentamente ia tomando forma na minha cabeça, ainda mais que vinha acrescentada de um sorriso encantador. Ainda estávamos em Janeiro mas precisava preparar o meu TPC de Fevereiro. Para onde quer olhasse já via montras cheias de corações e decorações apelativas ao romance (mesmo que destituído de paixão) e daí ia emergindo um excelente mote sobre o que dissertar.

    Essas imagens que proliferavam por onde passava, intuitivamente levavam-me a lembrar uma jovem que dois anos atrás tinha passado o dia de S. Valentim fora do seu país e fora do amor, que afinal não tinha sido. Dizia-me que 14 de Fevereiro, o "dia dos namorados" era um dia depressivo para quem é só, de amor. Eu, lembrando-a e ao seu estado de tristeza em tempos de agora também já esperava que este dia corresse rápido. Ao mesmo tempo dava-me conta da força do Marketing , que tem também o seu lado devastador - quase somos "empurrados" para encontrar alguém e caber dentro dos conceitos apelativos que criam, dentro dos tamanhos esbeltos dos seus modelos de estilo que por vezes levam a sacrifícios extremos pois pensamos que se nos "enfiarmos lá dentro" tudo será um "mar de rosas".

    Afinal e infelizmente não precisei chegar ao dia de S. Valentim para perceber que o problema não era só a força da publicidade e marketing que nos colocava numa situação em que nos sentíamos "fora da caixa". Em episódio de urgência deixava no hospital a pessoa que o tempo transformou na minha companhia - um pai. Nos dias em que o hospital foi a sua casa, terminava a visita e já com a noite a cair, à porta daquele edifício olhava os semáforos que existem em frente e pensava em lugares vazios que ia e tinha que aprender a enfrentar. Questionava-me: "que destino vais tomar agora?". Afinal a mãe natureza é sábia e coloca-nos "sensores" que acionam mesmo sem nos darmos conta disso. Seguimos o nosso instinto que conduz a lugares onde, por bocadinhos, nos sentimos "em casa".

    Na escolha do primeiro dia tive sorte por encontrar um lugar desses. Aproveitei o tempo desse dia e os que se seguiram para pensar com o coração mas não me esquecer de fazer a raiz quadrada com a razão. Fiz backup e voltei à check-list mental que por vezes me esqueço de fazer. Na perda de um amor, ou uma relação o mais aproximada possível desse sentimento, não é imperativo a sua substituição para suprir falta ou dor. Temos mesmo que estar atentos aos "semáforos" e evitar substituições ou emendas que podem sair pior que os sonetos. A solidão inicial dói, mas depois o tempo amortece e torna-nos mais racionais e atentos. Aprendemos a recauchutar, driblar, e fintar os sintomas que sabemos "não trazem com eles coisa boa" para o estado de espírito do nosso "eu".

    Transeunte da vida, habituando-me a percorrê-la com um pé do seu lado de cá e outro do seu lado de lá, cada vez mais me apego aos transportes públicos para me mover. Há tempos atrás dava-me conta que afinal não eram só os "outros" que os usavam para fintar a solidão. Eu também usava esta artimanha muitas vezes. Aprendi a deixar de estar dependente do toque de um telefone, invadir o espaço dos outros em lares de padrões diferentes dos meus, perder tempo a lamber feridas ou lamentar frustrações. Já tinha homenageado à minha maneira a vertente útil deste meio transporte mas agora associo-lhe o lado social e dedicado às pessoas que se entretêm a passar o tempo a circular neles. Mudar de paragem e se não escolherem o mesmo caminho de regresso, mudam de rota e chegam por outro lado, mas chegam - menos sós e até se calhar mais ricos de conteúdo por uma conversa interessante ou um conhecimento que... nunca se sabe!

    Tela de Claude Monet, Les Promeneurs, 1865
    Tela de Claude Monet, Les Promeneurs, 1865
    De mente desperta para um mundo que pula e avança, mas desatenta de tantas outras coisas foi muito tarde que consegui explicação porque é os autocarros das tardes de Domingo e feriados se enchem de pessoas na sua grande parte sós, madurinhas e aperaltadas para a "festa". Vão dançar. Ao longo das paragens vão entrando outras que afinal ali fazem o seu checkpoint, com pessoas amigas que têm os mesmos hábitos e em grupo lá vão catitas e felizes. Um dia falava com uma senhora que me explicava os amores e desamores que por lá se encontram, nas salas onde se baila ao som de rumbas, balsas e passos dobles. Não sendo este o formato que se adapta a mim, cada dia que passa tento não me esquecer de nunca julgar quem por ali anda e muito menos matar-lhes o sonho que percebi que mesmo pelo adiantado da idade ainda acalentam de não terminarem os seus dias sozinhas.

    História pública e que conheça chegada a meu conhecimento por um amigo inexcedível e imprescindível - o meu computador, onde "contos de fadas" destes acontecem conforme me apercebi, recordo sempre o de Edith Piaff. A menina que nasce e cresce no infortúnio até que desabrocha o virá a ser o seu maior tesouro - uma voz de timbre único. Léo Ferré, a "uma cantora morta" dedicava-lhe as seguintes palavras: "Tu tens nome de pássaro e tu cantas como cem. Como cento e dez mil pássaros que têm a garganta em sangue". Cantava a dor a que a vida não a tinha poupado com perdas irreparáveis como foi o de enterrar uma filha, uma saúde frágil e volatilidade que a transformava numa "saltimbanca" sentimental.

    Contudo, esta mulher franzina já em fase madurinha, não partia deste mundo sem ter o seu momento de "Romeu e Julieta". Um homem grego (20 anos mais novo do que ela) fez dela a sua "musa", num sentimento tão forte que atravessou a própria vida, juntando-se-lhe 7 anos mais tarde, depois de lhe ter pago todos os seus impostos, dívidas contraídas com vícios e doenças deixando-lhe do lado de cá a dignidade do nome dela e do seu próprio ao calar a opinião pública que sempre o tinha rotulado de "gigôlo". São efetivamente difíceis algumas opções de vida de pessoas que gostam de viver fora de quadrados, círculos, hexágonos e por aí fora, com desfechos que nem sempre são os mais felizes.

    Será recomendável ter-se os pés muito bem assentes na terra. A vida faz a parte dela mas é fácil que a própria solidão, o simples "fazer ver" ou ainda a necessidade de proteção pode transferir-nos para sensações que podem ser muito voláteis, iludindo como "presente" coisas e/ou pessoas que não levam a qualquer futuro e nos fazem saltar para dentro das tais figuras geométricas cujos interiores lhes desconhecemos, fechando-se atrás nós portas de cadeados que estão por dentro, fechados a 7 ou mais chaves, que nos ficam fora de acesso. Esta dificuldade de nos deixarmos voar por qualquer tipo de sopro, convencional, traz com ela o risco de conduzir a um ceticismo que reduz substancialmente aquilo que envolva qualquer tipo de laços, quer tenham ou não abraços - um jogo de perícia, sem naipe viciado, onde a "sorte" tem fator primordial pois nem sempre vale a mestria do jogador.

    Ao longo da ponderação que me acompanhava enquanto o calendário se aproximava rapidamente do 14 de Fevereiro, depois de já não precisar um "ponto de paragem" no hospital e sempre com um "um pé do lado de cá e um pé do lado de lá", resolvi "furar esta data" e na vez de me resguardar em casa fiz uma investida sozinha pelo misticismo deste dia, colocando-me no papel da jovem que representa uma geração mais do começo em formas diferentes de amores e desamores. Percebi que nem ela, nem pessoas de recomeço (como poderia ser o meu caso) estavam sozinhas. Olhando enxergamos que existe espaço para todos, num dia que afinal é só mais um dia.

    Neste dia, que afinal era só mais um dia, com a companhia do meu amigo computador percebi que a vida continuava a cuidar dos que sentem a generosidade da sua dádiva e isto porque o tal "sensor" acionava de novo e intuitivamente voltava a colocar-me em espaços onde sei encontrava os sorrisos e o calor humano que me faziam "sentir em casa", mesmo batendo a soneca que acordava o meu amigo computador, quando lhe batia com a cabeça. Na caminhada de regresso gostei da sensação de não abdicado do meu "eu" e apercebi-me que ainda bem para mim que não preciso de nenhum motivo especial para ser feliz. Bastam-me pedacinhos de ternura que colho aqui e ali. Deixo-os brincar no meu coração e por agora é isso a minha felicidade, quer haja Xiripitim, ou não.

    Por: Glória Leitão

     

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