Enterro do João deu vida a mais um Carnaval em Ermesinde
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Fotos MANUEL VALDREZ |
Com chuva ou com sol, o Enterro do João voltou a sair à rua para animar a população de Ermesinde durante a quadra carnavalesca. Ao longo de três dias (7, 8 e 9 de fevereiro), a freguesia rejubilou com aquela que é indiscutivelmente uma das mais importantes - e interessantes, há que dizê-lo - manifestações da cultura popular local. À semelhança do que tem acontecido no passado recente, esta tradição voltou a ser reavivada pela Junta de Freguesia de Ermesinde (JFE), organismo que contou com a colaboração de um leque de coletividades e entidades locais para levar por diante a festa, entre outras a Associação Académica e Cultural de Ermesinde, a Associação Desportiva e Recreativa da Gandra, a União Desportiva e Recreativa da Formiga, a União Desportiva Cultural e Recreativa da Bela, os Bombeiros Voluntários de Ermesinde e a esquadra de Ermesinde da Polícia de Segurança Pública (e que nos desculpem todos as outras coletividades/entidades que deram o seu importante contributo para o desenrolar das várias fases do evento).
Tal como no ano transato, o enredo do Enterro do João voltou a conhecer algumas novidades. Se em 2015 o João punha os pés em Ermesinde vivo e de boa saúde acompanhado da sua amante - contrariando assim a tradição de que o ilustre ermesindense regressava à terra já sem vida ou às "portas da morte" - em 2016 ele volta a surgir na freguesia a vender saúde e de novo a apunhalar o matrimónio com a sua legítima esposa, Maria Rambóia, que desta vez foi traída com… um homem! Na chegada do João à Estação de Ermesinde, ao início da tarde do dia 7, o S. Pedro deu tréguas e permitiu que o sol aparecesse tímido entre as nuvens a dar as boas vindas ao conhecido cidadão local, facto que fez com largas centenas de populares tivessem acorrido às imediações da estação para também eles saudarem o regressado João. Depois de saudar e agradecer a calorosa receção à multidão que o esperava, o João lá partiu num animado e colorido cortejo carnavalesco pelas ruas da cidade composto por centenas de foliões. Até que o João teve o seu final trágico, um atentado, ao que percebemos, que o leva "desta para melhor". O enredo tem então continuação na noite de 8 de fevereiro, com o velório do João, que teve lugar na zona onde esta tradição tem as suas raízes, a Travagem. Contrariamente a anos anteriores, o velório não ocorreu no largo da feira velha, como inicialmente estava previsto, pois devido à forte intempérie que, entretanto, voltou a assolar a região, a organização teve de encontrar um "Plano B" para continuar a levar por diante a paródia carnavalesca. E a solução passou por transferir o velório para o armazém da JFE situado junto aos terrenos da Resineira, um local que se iria revelar pequeno demais para acolher a multidão que não quis perder os capítulos seguintes do divertido enredo. Sobretudo o derradeiro capítulo, o do julgamento e o enterro - ou a queima neste caso - quiçá o ponto alto da festa, o qual aconteceu na noite de Carnaval (9 de fevereiro). Inicialmente, esta última fase da festa esteve agendada para os terrenos da Resineira, onde se encontrava instalado um palco para levar avante o capítulo do julgamento e a sempre aguardada leitura das deixas, mas como o S. Pedro não estava de fiar, a Junta resolveu continuar a festa no seu armazém. Também aqui a popular paródia carnavalesca sofreu alterações em relação ao que diz a história, isto é, este último ato deixou de ser realizado nas margens do rio Leça, mais precisamente entre as pontes ferroviária e rodoviária, onde, aliás, foi reproduzido desde que a JFE chamou a si a organização da festa, para passar a ser realizado ali ao lado, nos já referidos terrenos da Resineira. Isto acontece, e nunca será demais recordar, devido ao facto de as citadas margens se encontrarem em fase de recuperação, ao abrigo de um projeto abraçado pela Junta, e nesse sentido não se afigurarem como o palco ideal para levar por diante este particular capítulo do enredo. Aparte este pormenor logístico, ainda que importante de acordo com a história do Enterro do João, a organização tentou manter-se o mais fiel possível à tradição, e nesse sentido o final do popular cidadão de Ermesinde acabou por ser junto ao Leça, próximo da ETAR, onde os foliões assistiram à queima do (boneco do) João. Em suma, a tradição na sua essência, foi cumprida com eficiência, com um ou outro lapso, e aqui será de referir a deficiente dicção de algumas das personagens do julgamento, facto que a juntar à algazarra provocada pela multidão que lotou o armazém da Junta. em determinados períodos, quer do julgamento quer da leitura das deixas, tornava impercetível o que se passava em palco. Por fim, um elogio à eterna viúva do João, Maria Teles (Rambóia), a guardiã desta tradição, talvez a única pessoa que habita o "mundo dos vivos" que ajudou a enraizar na cultural popular local o Enterro do João, e como tal conhece como ninguém a essência desta paródia carnavalesca, ela que, mais um ano, foi um espetáculo dentro do próprio espetáculo. Como a própria Maria Rambóia confessou numa recente entrevista concedida ao nosso jornal, vai ser difícil um dia alguém a substituir no papel de viúva do João, pois "é preciso ter queda e lata", sobretudo queda Dona Maria, em nossa opinião, e a senhora tem que sobra.
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AS DEIXAS DO JOÃO
Momento imperdível da festa é por norma o período da leitura das deixas, que este ano foram 110, um pouco menos do que no ano passado e, como manda a tradição, as primeiras referem-se à vida do João. Eis, pois, algumas das pitorescas quadras que marcaram o Enterro do João de 2016:
Boas noites meus senhores (e minhas senhoras, meninos e meninas, crianças e crianços, menos novos e menos velhos, mais novos e mais velhos, desamparados, encalhados e outros ados, bem, o melhor é começar.
Continuamos a tradição
de fazermos o funeral
ao nosso amigo João
(…)
Minhas senhoras e meus senhores
Aqui vos vou dizer
A vida que o João passou
Enquanto andou a viver
Na Bela foi nascido
Em Ermesinde foi batizado
A sua mãe deixou-o à roda
Com o nome de João bastardo
Andou perdido na vida
Teve sorte e não foi de aviário
Foi parar aos States
E por lá ficou milionário
(...)
Em Nova Iorque viveu sem moral
Por isso veio fazer um retiro
Mal chegou a Portugal
Foi morto com um tiro
(…)
Como também manda a tradição as origens do Enterro do João nunca são esquecidas nas deixas, em particular à figura de Abílio Rambóia, que durante décadas a fio foi o principal dinamizador deste enredo carnavalesco.
Se há funeral cá em Ermesinde
Do nosso amigo João
Agradecemos ao sr. Abilio
Que os fez sem um tostão
A causa de tudo isto
E não para andar à bóia
E para não apagar da memória
Era o senhor Abílio Rambóia
(pedir aplauso de homenagem)
E posto isto lá começaram as alfinetadas, tendo a primeira sido oferecida à vizinha freguesia de Alfena, que ao que parece quer imitar esta velha tradição ermesindense.
Com as deixas que ele deixou
Até é preciso ter pena
Vejam que até deixou imitadores
Lá para os lados de Alfena
Surgem depois algumas reivindicações para Ermesinde, surgindo posteriormente os bens que o João deixa a inúmeras associações/instituições/personalidades ermesindenses.
E para bem de Ermesinde
Por quem tenho muitos sentimentos
Deixo uma grande maquia
Para muitos melhoramentos
Ao abrir estes responsos
Pois o juiz não erra
Deixo 1 milhão de euros
Aos bombeiros da nossa terra
(...)
Por ser lar dos idosos
Desses não me esqueceria
Deixo mais 5 milhões de euros
Para dar aos centros de dia
E para o Centro Social
Deixo as minhas mais valias
Para que toda a cidade ajude
E se deixem de manias
(...)
E para a Associação Académica
e Cultural de Ermesinde
Porque têm competências
Deixo mais associados
Para aumentarem as valências
E para a ADICE
Com credito valoroso
Deixo o meu reconhecimento
E um abraço caloroso
Para a Sabor a Teatro
Deixo muito das minhas posses
E para afastar os artistões
Os necessários fantoches
E para o rancho da Casa do Povo
Porque sei que não levam a mal
Vou oferecer um calendário
Para se lembrarem do Carnaval
(...)
E ao padre de Ermesinde
Por ser dele que a gente gosta
Deixo um milhão de euros
Para fazer uma casa na Costa
A tradicional rivalidade entre Ermesinde e Valongo não escapa mais uma vez à língua afiada do João, que aproveita a oportunidade para mandar alguns recados ao atual presidente da Câmara.
Deixo 2 milhões de euros à Junta
Por ser gente de valia
Para iluminar a cidade
Que à Câmara competia
Deixo a decisão ao povo
Mesmo que Valongo leve a mal
Mas só com Câmara em Ermesinde
Seremos terra sem igual
(...)
E das eleições presidenciais resultou
Um novo presidente
Eles ganham sempre
E quem se lixa é a gente
(...)
Ao senhor presidente da Câmara
Por quem tenho considerações
Para o ano sei que conto consigo
Porque é ano de eleições
Para o ano não deixo nada
Vai haver até balões
Em 3 anos não fez nada
Faz para o ano que são eleições
Disse o senhor Ribeiro
Que não fez promessas
A mim fez-me duas
Mas continua sem pressas
Nem pavilhão da Bela
Nem rio nem Resineira
Não espere pelas eleições
Pois parece sem eira nem beira
E ao senhor Ribeiro
Que por aqui está por um fio
Ou investe em Ermesinde
Ou nunca chegará a rio
(...)
Deixo um pedido à Câmara
Ponham tudo na panela
O estádio está quase resolvido
Falta o pavilhão da Bela
E como também é hábito nem o Governo escapa às críticas do João.
E para o Governo que carrega nos impostos
Da ideologia abram mão
Acabem com as coisas vitalícias
Dêem a saúde e a educação
(...)
Ao Governo deixo um aviso
A vida está mal e trabalho nem vê-lo
Ou resolvem a situação
Ou o povo da-vos no pelo
E se o Governo continua assim
Lá se vai a nossa sorte
Vamos todos acabar
Como a Churrasqueira do Norte
O final, apoteótico, este ano foi assim:
E agora prestem todos atenção
Não vale a pena a chorar
Pois queiram ou não queiram
O João vai acabar
Agora ninguém arrede pé
Isto não é nenhum engano
Só peço a Deus que estejamos
Aqui todos para o ano
E para não haver confusão
Em vez de ser enterrado
Porque não quero estar frio
A minha vontade é ser cremado
E porque não há crematório
E pouco quem o peça
Vejam la a minha sina
Vou ser queimado no Leça
Dou os parabéns à Junta
E a sério estou a falar
A obra do rio ficou bonita
Até da gosto de gabar
Mas tirarem a festa do sítio
Dá sempre que pensar
Quando quiserem baixar os custos
Vão atirar-me à ETAR
Por:
Miguel Barros
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