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    Arquivo: Edição de 29-02-2016

    SECÇÃO: Destaque


    DIA INTERNACIONAL DA MULHER / ENTREVISTA COM MARIA DO CARMO CASTELO BRANCO VILAÇA DE SEQUEIRA

    Capítulos de um longo romance com a literatura

    É comum dizer-se que "filho de peixe sabe nadar" sempre que alguém se distingue numa determinada área em que o progenitor também ganhou notabilidade. No caso concreto da personalidade que nas linhas que se seguem iremos conhecer, o laço familiar estende-se para lá de duas gerações - de pai para filho -, é certo, mas não é menos certo que esta ligação parental acabou por abrir o longo e notável trajeto de vida que vem sendo percorrido por esta ilustre figura que desde os três anos de idade se familiarizou com Ermesinde. Sem mais demoras, sem mais enigmas, vamos dar a palavra a Maria do Carmo Castelo Branco Vilaça de Sequeira, trineta de Camilo Castelo Branco e incontornável senhora das ciências literárias, cujo percurso enquanto investigadora no universo da língua e da literatura é reconhecido no plano nacional e internacional.

    Fotos MANUEL VALDREZ
    Fotos MANUEL VALDREZ
    O dia chuvoso, frio, e por consequência pouco convidativo a sair de casa esteve longe de constituir um entrave para que Maria do Carmo Castelo Branco Vilaça de Sequeira aceitasse o nosso convite para uma conversa que teve como palco a casa da cultura ermesindense, o mesmo será dizer, o fórum cultural. A eloquente simpatia com que se apresentou à hora marcada deu aso às primeiras notas de uma conversa que se viria a revelar entusiasmante. Naturalmente que este diálogo começou por fazer uma incursão ao início do notável percurso de uma figura que enquanto investigadora académica reúne no seu currículo diversos artigos/estudos publicados em revistas especializadas, trabalhos editados em atas de mais de meia centena de eventos realizados não só em Portugal como no estrangeiro, e a edição de três obras literárias da sua autoria. Mas já lá vamos em relação a este último capítulo.

    Início que passa por Ermesinde, localidade que não é sua de berço - é natural de Paranhos, no Porto -, mas que a acolheu com apenas três anos de idade e que até hoje lhe serve de lar, o qual deixou somente nos tempos em que primeiro estudou, e posteriormente trabalhou, em Coimbra e no curto período em que viveu em Angola. Sente-se pois uma ermesindense, assim se confessa. Mas é a literatura, esta ligação aos livros e aos grandes autores portugueses do século XIX que os seus prestigiados trabalhos académicos retratam... «Sabe, eu sou trineta de Camilo Castelo Branco. A minha avó era a neta mais velha de Camilo e, como tal, desde menina que me habituei a ouvir falar muito dele, sobretudo através dos homens da minha família, mais concretamente o meu avô materno e o meu pai, que eram dois camilianistas ferrenhos», disse-nos por entre sorrisos nostálgicos a nossa interlocutora.

    Na sua inocência de menina, com os seus cinco ou seis anos, perguntava-se vezes sem conta o que teria feito de tão notável aquele seu trisavô para ser tão falado nas conversas familiares. "Escreveu", era a resposta que ouvia com frequência. Mas o que tem isso demais, pois «eu também escrevo!», retorquia com a ingenuidade própria da idade a então menina Maria do Carmo.

    EM SEIDE

    DESCOBRE CAMILO

    E… O AMOR

    PELA LITERATURA

    Com o natural avançar da idade foi percebendo melhor a razão de Camilo ser uma figura tão falada e popular, sobretudo nas alturas em que passava as suas férias na casa de Seide de sua segunda tia Raquel, quase ao lado da "Casa Amarela", onde o escritor viveu os seus últimos dias. Nessa época começou a descobrir Camilo. Ainda muito jovem lê o "Amor de Perdição" e "A Enjeitada", os primeiros livros que leu do autor. Digamos que esta descoberta despoletou em si o fascínio pela literatura, o fascínio que ainda hoje sente, e que na época a levou ao encontro de outros autores, como Júlio Dinis, por exemplo, com quem também travou conhecimento durante as férias em S. Miguel de Seide e nas visitas frequentes que fazia ao Museu de Camilo Castelo Branco, também situado naquela localidade do concelho de Vila Nova de Famalicão, onde era tratada por Vossa Excelência - ou não fosse ela descendente de quem era - pelo funcionário do museu. Foi também ali que se deixou encantar pela literatura francesa.

    O meio em que nascemos, e onde posteriormente somos criados, tem quase sempre o condão de despertar em nós certas apetências. Não é à toa que se diz que somos fruto do meio em que vivemos ou em que fomos criados. E nesse sentido o trajeto profissional e académico de Maria do Carmo Castelo Branco acaba por ser a natural consequência do meio literário em que viveu durante a infância. Os livros, como faz questão de frisar, desde cedo que fizeram parte da sua formação.

    DUELOS LITERÁRIOS

    LEVAM-NA

    AO ENCONTRO DE EÇA

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    O trajeto camiliano durou até ao seu 7º ano de liceu, altura em que travou conhecimento com outro vulto da literatura portuguesa, Eça de Queirós. Um encontro que se deu no Liceu Alexandre Herculano, no Porto, onde a nossa entrevistada realizou os dois últimos do seu percurso escolar antes de rumar à Universidade de Coimbra. No Alexandre Herculano brincava com os colegas aos duelos literários, onde de um lado estavam os Camilianos e do outro os Queirosianos. Nessas batalhas sentia-se, naturalmente, na obrigação de defender o seu trisavô Camilo, e como tal atuava sempre pela equipa dos Camilianos. Estes duelos obrigavam a que os seus intervenientes tivessem a necessidade de ler textos, ou frases, escritas pelo autor adversário de modo a ganhar pontos nestas lutas literárias. «E foi dessa forma que eu comecei a ler Eça, comecei a entusiasmar-me por Eça. E isso acabou por determinar as minhas teses de mestrado e doutoramento (em Literatura Portuguesa)», recorda Maria do Carmo Castelo Branco.

    Faz, no entanto, uma ressalva de que a sua tendência - sobretudo no desempenho do papel de investigadora - sempre pendeu para o lado do Eça fantástico, e não do Eça naturalista. «Primeiro surgiram as prosas bárbaras, no mestrado, e depois no doutoramento fui mesmo para a área do fantástico, em que fiz a recolha de toda a obra queirosiana, e onde encontrei um largo espaço do maravilhoso e do fantástico. No fundo aquilo a que chamei de a Dimensão Fantástica na Obra de Eça de Queirós».

    De volta aos tempos de juventude, a trineta de Camilo termina o liceu e segue para Coimbra para estudar... Direito! Como é que o Direito aparece no horizonte de alguém cujo fascínio pela área da literatura era por demais evidente? A resposta é simples. Naquela época - fins dos anos 50 - era atribuído a cada liceu, nos dois últimos anos, uma alínea, sendo que essa alínea indicava a área que os alunos desse liceu iriam abraçar no ensino superior. O Liceu Alexandre Herculano tinha a Alínea E, que correspondia à área do Direito, e é assim que Maria do Carmo Castelo Branco segue, em finais da década de 50, não com muito entusiasmo, é certo, para a Faculdade de Direito de Coimbra. Ali permanece apenas dois anos, pois «percebi que aquela não era a via que queria seguir», e é nessa altura que decide assumir academicamente o seu grande amor: as letras.

    Muda de curso e ali mesmo, em Coimbra, acaba mais tarde por se licenciar em Filologia Românica. Os primeiros passos profissionais na área da docência da língua dão-se precisamente ali perto da "cidade dos estudantes", num colégio, antes de partir para Angola onde vive durante cinco anos. No regresso a Portugal, no pós 25 de Abril, leciona na Escola Rainha Santa, no Porto, por onde aliás também havia passado enquanto estudante. Posteriormente, segue profissionalmente para o ensino superior, mais concretamente para a Escola Superior de Educação (Porto), onde permaneceu durante 15 anos no desempenho de vários cargos distintos, entre outros o de professora coordenadora. Após a aposentação do ensino público é convidada para trabalhar na Universidade Fernando Pessoa, onde Salvato Trigo, seu orientador da tese de mestrado, desempenhava funções de reitor. Nesta instituição particular, a nossa entrevistada desempenhou várias funções de relevo, entre outras a de diretora da Faculdade de Ciências Humanas e Sociais.

    ENSINO CRUZA-SE

    COM A INVESTIGAÇÃO

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    Mas e a investigação, quando e como é que ela surge neste notável trajeto profissional. «O meu percurso de investigadora acabou por cruzar-se com a área do ensino», refere, embora o momento exato em que se deu início a esse cruzamento seja hoje difícil de precisar, pois «já foi há muito tempo! Comecei por um livro de contos muito simplistas, intitulado "A Varanda"». Depois disto, muitos outros trabalhos científicos se seguiram, uns foram sendo publicados, outros não, mas todos elaborados com uma paixão desmedida, conforme faz questão de sublinhar. «Este trabalho é uma paixão! A literatura para mim não é um esforço, não é uma atividade que me perturbe, é um gosto, uma paixão. Fui sempre uma leitora, e quando lemos muito acabamos por tentar a escrita», refere a professora-doutora quando incitada a descrever o trabalho cientifico que tem abordado as obras dos grandes escritores portugueses dos séculos XIX e XX, como os já referidos Camilo Castelo Branco e Eça de Queirós, a que se juntam outros vultos literários como Almeida Gerrett, Aquilino Ribeiro, José Saramago, Fernando Pessoa… «Pessoa foi para mim uma grande paixão desde os tempos em que eu comecei a lecionar no Colégio Vera Cruz (arredores de Coimbra). Lembro-me que na altura ele "vivia" um pouco esquecido e só lembrado em algumas áreas portuguesas, mas eu tive sempre um fascínio por ele. Escrevi pouco sobre Pessoa em concreto, apenas sobre os heterónimos, nomeadamente, sobre Bernardo Soares, mas dentro dos escritores portugueses depois, ou ao lado de Camilo e Eça, ele faz parte do meu rol de escritores favoritos», confessa uma figura que, e refira-se como curiosidade, no plano local ajudou a fundar a Universidade Sénior de Ermesinde.

    Fascínio é um sentimento que nutre de igual forma pela literatura russa, e por Fiodor Dostoiévski, em particular, recordando "Os Irmãos Karamazov" como uma das primeiras obras de leitura externa que leu. Da nova geração de escritores conhece pouco, e como tal prefere não arriscar grandes considerações sobre os seus trabalhos. «Sabe, quando se chega à velhice, começa-se a ler para trás», frisa com algum humor na intenção de justificar o desconhecimento sobre as novas gerações do Mundo das letras. No entanto, e sobre os escritores ainda no ativo destaca um: Mário Cláudio, «um enorme escritor que também é um camiliano assumido, com vários trabalhos publicados sobre Camilo. Digamos que destes escritores atuais, Mário Cláudio é talvez aquele que mais me entusiasma». Embora já desaparecidos, nomes como José Cardoso Pires e Carlos de Oliveira fazem igualmente parte dos escritores do século XX mais admirados pela nossa entrevistada, destacando neste último as obras "Finisterra" e "Uma Abelha na Chuva". Apesar de se encontrar hoje aposentada, Maria do Carmo Castelo Branco de Sequeira Vilaça não deixa de ler nem de escrever. «Eu quando deixar de ler morro», disse-nos por entre sorrisos, antes de confessar que nas horas que antecederam esta entrevista se encontrava a escrever um texto sobre David Mourão Ferreira, outro vulto da literatura por quem nutre profunda admiração e que teve grande influência no seu trajeto profissional.

    OS TRÊS LIVROS

    PUBLICADOS

    E já que voltamos a falar em trajeto profissional, tornou-se oportuno debruçar-mo-nos sobre algum do trabalho de cariz científico desenvolvido pela nossa entrevistada, mais concretamente os livros publicados. Eles foram três, nomeadamente "Prosas Bárbaras", que foi na realidade a sua tese de mestrado, "A Dimensão Fantástica na Obra de Eça de Queirós", resultante da sua tese de doutoramento, na qual foi orientada pelo professor Vítor Manuel de Aguiar Silva, «o meu mestre, e um grande teórico da literatura», como faz questão de sublinhar, e o mais recente "Quinze Dias de Febre". Este último livro significou um "regresso" a Camilo Castelo Branco, depois de anos a estudar e a trabalhar Eça de Queirós. "Quinze Dias de Febre" acaba por ser um percurso por toda a obra de Camilo, «é um livro escrito na primeira pessoa, é como se fosse o próprio Camilo a escrevê-lo, e é um percurso por toda a sua obra», explica-nos. E porquê "Quinze Dias de Febre"? «Porque terão sido 15 os dias que ele teria levado a escrever "O Amor de Perdição" enquanto esteve preso na Cadeia da Relação do Porto». Camilo que nos últimos anos está um pouco esquecido, segundo a nossa inter-locutora, embora, e ainda de acordo com as palavras da trineta do escritor, a sua obra esteja a regressar agora ao ensino, aos manuais escolares - do 11º ano, mais concretamente -, tal como aliás acontece com outros escritores que estiveram "ausentes" da escola num passado recente, como Eça ou Almeida Garrett. «Não concordo, no entanto, que apenas sejam lecionados alguns fragmentos de Camilo ou Garrett. Mas pronto, já foi um avanço conseguir que a literatura regressasse ao ensino», opina.

    Ensino que para a professora-doutora está hoje muito diferente do seu tempo. Fundamenta esta sua opinião com alguma tristeza, ao constatar que atualmente os alunos não gostam da escola e os professores vivem dias de desânimo pela falta de apoio, que é evidente na desmotivação com que lecionam. «No meu tempo toda a gente queria ir para a escola porque era uma meta difícil de atingir. Hoje, com esse acesso mais facilitado, não entendo como é que uma geração que tem tudo para entrar na escola não gosta dessa mesma escola! Há qualquer coisa que não está certo, mas não sei de quem será a culpa», diz com desânimo.

    Esmorecida está de igual modo a área em que Maria do Carmo Castelo Branco se notabilizou, a investigação das ciências literárias. Na sua visão hoje continuam a existir muito(a)s investigadores, mas quase todos eles oriundos da sua geração, nomes com quem trabalhou e desenvolveu profundas amizades, como Isabel Pires de Lima, por exemplo, uma investigadora queirosiana de renome internacional. Mas, gente nova, proveniente das atuais gerações de estudantes, quase ninguém abraça a área das humanísticas. Na voz da nossa entrevistada este facto é simples de ser decifrado. «Antigamente para onde iam os licenciados em letras? Para o ensino. E neste momento o acesso ao ensino no nosso país está parado. Os que lá estão não sobem na carreira e para os novos é difícil entrar. Isto faz com que muita gente fuja das áreas humanísticas quando entra na universidade, optando antes pelas áreas das ciências, como por exemplo as engenharias. E isso limita o gosto pela literatura. E só quem realmente gosta de literatura, que lê por prazer, como o meu caso, é que vai para a área das letras. Mas do ponto de vista da investigação académica ao nível das letras, há de facto uma quase morte», refere.

    E porque esta entrevista teve como pretexto o Dia Internacional da Mulher, que se comemora a 8 de março, não resistimos a perguntar a esta ilustre investigadora ermesindense se alguma vez ao longo do seu trajeto profissional e académico sentiu uma pinga de preconceito. Disse-nos prontamente que não, que sempre foi tratada com muito respeito por pessoas de ambos os sexos, quer nos tempos de estudante, quer enquanto docente e investigadora. Acrescentou aliás que lhe faz uma certa confusão a simples ideia de divisão em metades iguais (seja do que for) para o homem e para a mulher. «Eu sou contra isso. Ao pensar-se assim não se dá o verdadeiro valor à mulher. A mulher deve assumir um determinado papel ou cargo, por exemplo, quando tem valor, e o mesmo se passa em relação ao homem. O que importa se a mulher assume determinado cargo só porque é mulher e no fundo não se mostra competente para o desempenhar? E o mesmo em relação ao homem. O acreditar na igualdade do género deve permitir aos melhores avançarem em qualquer área», sublinha a trineta de Camilo Castelo Branco no cair do pano sobre esta interessante conversa em torno da literatura.

    Por: Miguel Barros

     

     

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