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Edição de 31-03-2024
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    Arquivo: Edição de 16-05-2014

    SECÇÃO: Crónicas


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    Terras de brisa ligeira(1)

    O imobilismo foi de tal ordem ao longo de séculos que, dir-se-ia, a mudança não foi mais que uma ligeira brisa, pequenos avanços no modo de vida das populações: o outono trazia frutos e arrastava as folhas secas que a estiagem e os primeiros ventos frios faziam tombar e, ao arrastá-las, juncavam caminhos que chuvas, pessoas e animais iam desfazendo ao passar, tempo de sementeiras do cereal, recolha de castanha e de azeitona; no inverno havia chuva abundante, geadas e nevões que muito raramente permitiam trabalho agrícola, à exceção da poda de árvores mais para diante, mas davam o aconchego das famílias à lareira a comer bilhós(2) enquanto o fumo curava os produtos resultantes das mata-porcas(3); a primavera chegava a dissipar as nuvens num convite ao sol e subindo gradualmente as temperaturas o que permitia cultivo de hortas, cortinhas e veigas (hortaliça, legumes, tubérculos, cereal tardego(4)), mondas e escava das vinhas, florescência de amendoeiras, cerejeiras e outras árvores frutíferas; chegado o verão tinha início um ror de trabalhos difíceis, os mais pesados, como a ceifa dos fenos, as segadas, acarrejas(5), malhas e recolha dos cereais, finalmente o arranque e armazenamento das batatas. Tudo era feito com o auxílio de animais de tiro(6) com recurso exclusivo ao natural, desde os utensílios à fertilização das terras, ao combate às ervas daninhas e às moléstias que infestavam plantas e árvores. Somente no pós-2ª Guerra Mundial, foram introduzidos, adubos, pesticidas e outros químicos acabando as pouco higiénicas estrumeiras(7), apareceram as primeiras máquinas que tornaram, gradualmente, mais rápidos e fáceis os trabalhos do campo. Quem persiste na agricultura tem, hoje, ao seu dispor, a mais atualizada maquinaria.

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    Da sacristia ao passal, da rabiça do arado a compromissos na cidade, havia, em tempos idos, um complexo sistema de vasos intercomunicantes que transportavam necessidades, preocupações, circunstâncias várias e caracterizavam a forma de viver nas pequenas comunidades rurais.

    O padre era pastor e, em muitos casos simultaneamente, membro da comunidade: autoridade religiosa porque só a ele competia orientar a instrução doutrinal de crianças e de adultos, presidir aos atos de culto, ministrar os sacramentos, acompanhar os defuntos desde a casa que habitou até à igreja e desta, após Missa de corpo presente e ofícios fúnebres, para o lugar que, impropriamente, designamos por “sua última morada”, onde procedia à “encomendação do cadáver”, derradeiro ato litúrgico de despedida a quem foi cristão e de quem já só existiam restos; membro da comunidade com residência paroquial, terras de cultivo e outros bens a que davam o nome de passal, destinados à subsistência do sacerdote e de outros membros da sua família, na maior parte dos casos, uma irmã solteira ou, à falta desta, uma criada com mais de cinquenta anos. As famílias eram numerosas e de grande fé, o que determinava o desejo dos casais em ter um filho padre e a renúncia ao casamento por uma das suas irmãs que assumia a administração da casa e colaborava no ensino da catequese e em serviços de apoio religioso às pessoas da aldeia. Nas famílias em que tal não era possível, o sacerdote podia recorrer, para a lida doméstica, a uma mulher que, presumia-se, não lhe despertasse desejos carnais, daí a regra de excluir todas quantas estivessem em idade fértil e de aspeto menos atraente, tanto mais que, em tempos não muito distantes, as pessoas envelheciam bem mais cedo.

    A instituição eclesial não estabelecia preço pelos serviços religiosos, justificando que não se regulava por interesses materiais mas, de um modo ou de outro, todos sabiam quanto “custaria” mandar celebrar uma missa, em quanto importava um batizado ou um funeral. Quem mandasse celebrar uma missa cantada sabia que teria de despender mais dinheiro consoante o número de co-celebrantes e atendendo à solenidade do ato. O mesmo acontecia tratando-se de ofícios fúnebres, situação em que o número de padres e o valor a pagar seriam correspondentes. A morte de alguém de família abastada implicava a presença de muitos adjuvantes do pároco, diminuindo o custo consoante o rendimento do agregado a que o defunto pertencia até aos mais pobres que, por norma, ficavam a cargo exclusivo do pároco local. Ainda que tal costume não fosse de responsabilidade eclesiástica, também não era por ela contrariada. Esse e outros hábitos demonstravam que, até na morte, os fiéis estabeleciam diferenças entre si por critérios materiais. A par dessa diferenciação, existia outra, a de distribuir uma moeda pelas pessoas que assistiam ao funeral, mais valiosa se o morto pertencia a uma “boa casa” e diminuindo segundo os recursos dos familiares. As moedas eram distribuídas aos presentes no decurso da cerimónia e era suposto que fossem por eles depostas sobre um pano negro colocado junto da urna, convidando-os, desta forma, a contribuírem para a celebração de missas por alma do defunto. Cada um era livre de aceitar o convite ou de guardar a moeda, situação em que ela se transformava em óbolo pela mesma intenção. Até meados do século passado, as aldeias transmontanas eram densamente povoadas, de assídua prática religiosa e separadas umas das outras por escassos quilómetros A comparência aos funerais, ainda que de outra aldeia, era considerada dever religioso e social. Algumas dessas pessoas tinham familiares na terra onde se realizava o funeral e almoçavam em suas casas; outras tinham que recorrer a meios próprios para comer nas tabernas. Em tempos mais recuados, à família do falecido incumbia distribuir pão e vinho a quem desejasse, desde que tivesse condições para tal.

    As paróquias de antanho podiam ou não coincidir com as freguesias, muitas limitavam-se a uma só aldeia enquanto as freguesias podiam ter duas ou três aldeias anexas. Havia grande afluência de rapazes aos seminários que, em percentagem significativa, se tornavam sacerdotes porque era uma honra ter um filho padre, não se falava muito de falta de vocações. Durante séculos, os seminários foram mesmo a única maneira de os menos favorecidos acederem à cultura e, simultaneamente, escaparem a uma vida muito esforçada e pouco compensadora. Filhos de lavradores, na sua maioria, não se furtavam a empunhar a rabiça do arado ou o cabo da enxada, a semear, a regar e a fazer outros trabalhos agrícolas, embora pudessem contar sempre com a prestimosa colaboração dos paroquianos, sobretudo quando esses trabalhos exigiam mais braços como as colheitas dos cereais, das batatas, a apanha da azeitona ou as vindimas.

    Todavia, ao múnus sacerdotal e às tarefas do campo, os padres tiveram outra função que lhes era atribuída pelo Estado: lavrar assentos de nascimento, de casamentos e de óbitos dos paroquianos. Por falta de tempo, de concentração ou de zelo, muitos párocos cometeram erros nos assentos de batismo com reflexos negativos nas vidas dos futuros cidadãos: esqueciam-se de escrever o apelido de uns; trocaram o apelido de irmãos; deram um nome no batismo católico e escreveram outro para a mesma criança no registo que hoje chamaríamos civil. Na aldeia onde fui criado, conheci irmãos a quem foram sonegados os nomes de família, que nós chamamos apelidos e os brasileiros conhecem como sobrenomes; todos ficaram com dois nomes próprios, José Manuel, Maria Emília, Antónia de Jesus, por exemplo; irmãos filhos do mesmo pai e da mesma mãe aos quais foram atribuídos os apelidos de Pires a uns e Ferreira a outros; conheço, pelo menos, o caso de um homem a quem atribuíram dois nomes próprios: José numa instância e César na outra.

    De uma aldeia para outra, ou para a cidade, padres e gente comum deslocavam-se a pé na maioria dos casos, ou montados em burras, machos, mulas, cavalos ou éguas que era necessário alimentar. O feno, a palha ou o grão faziam parte da equipagem.

    A geração que, no tempo atual, tem mais de setenta anos bem pode afirmar que passou da Idade Média para a época pós-moderna, porque nenhuma outra ao longo da História presenciou tantas e tão rápidas mudanças.

    (1) De brisa ligeira – (sentido figurado) de mudanças quase insignificantes;

    (2) Bilhós – castanha depois de assada e liberta da casca;

    (3) Mata-porcas – mata-porca, mata-porco, matança, variações vocabulares para uma das mais importantes datas na vida rural pelo que representava na vida das pessoas da aldeia;

    (4) Tardego – o mesmo que tardio, semeado mais adiante;

    (5) Acarrejas – transporte do cereal, em carros de bois, do campo para as eiras onde era malhado;

    (6) Animais de tiro – em geral chamavam assim aos animais que puxavam o arado ou o carro: bovinos, muares, equinos;

    (7) Estrumeiras – palha ou folhas de carvalho espalhadas nos caminhos sobre as quais caminhavam humanos e animais e que, uma vez desfeitas, eram retiradas e levadas para estrumar as terras.

    Por: Nuno Afonso

     

     

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