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Edição de 31-03-2024
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    Arquivo: Edição de 30-04-2014

    SECÇÃO: Crónicas


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    Sem as pancadas de Molière

    Numa noite de sábado eu estava a precisar imenso de fazer algo diferente, pois tinha passado parte desse dia a desempenhar um papel: o de “crente”. O desafio era tentar perceber até que ponto os outros se importavam com… os outros – afinal ainda é muita gente, conforme tive o prazer de concluir. Se explicarmos às pessoas (bem explicadinho) as coisas simples e gratificantes que ajudam a mudar um bocadinho do mundo onde se cruza solidariedade, partilha, oportunidade, grande parte do ser humano vai a um pedacinho de si mesmo e enxerga o seu lado humano, até sem grande esforço. Gostei de sentir isso, de tal forma que não acusava cansaço, depois da maratona que tinha feito e isto porque trazia mais entusiasmo do que eu própria tinha levado comigo.

    Esse “fazer algo diferente” ia ser assistir a uma peça de teatro. Andava a adiar esta decisão que se tornava cada vez mais apelativa porque há anos não assistia a uma peça e há pouco tempo, ao ouvir no noticiário da manhã uma comentadora convidada, que era atriz, surpreendi-me pela compreensão que demonstrava pelo facto de a crise estar a arredar as pessoas das salas de teatro. Dizia que as companhias de teatro se estavam a unir para se apoiarem e partilharem recursos para conseguirem sobreviver até ao limite dos possível (e dos impossíveis). Dei-me conta que nesta arte não vivem na rivalidade de quererem a sua sala cheia e a do “outro”, vazia, se calhar porque na arte da representação une-os um denominador comum: o valor das palmas, aquilo porque muitas vezes vivem e até sucumbem. Quando não conseguem, pelo menos “morrem de pé” por terem tentado, como as “árvores” da saudosa Palmira Bastos, que a preto e branco nos entrava pela TV adentro.

    Coadjuvando com este meu sentir, a vida tem-me cruzado bastantes vezes com o grupo “Cabeças no Ar e Pés na Terra”. Sadiamente jovens e com os pés bem assentes nas responsabilidades que isso significaria nas suas vidas, chamaram a si um desafio que não é para qualquer um: transformar o bairro (que é nosso vizinho) num projeto de arte – “Saibreiras Bairro d’Artes”. A teimosia está a fazê-los conseguir. É lógico que os constrangimentos são criados pelas próprias pessoas, os medos de quem quer fazer parte e o desencorajamento e a crítica destrutiva dos que não querem que assim seja. Porque quem abraça a arte do teatro precisa ter muita crença. Eles tiveram a força suficiente para ultrapassar estes “senãos” e ainda fazer com que as pessoas tivessem a coragem de acreditar em si mesmos.

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    Agora a arte anda aqui pela “bandas” onde trabalho, com peças que se vão desmultiplicando e focadas em realidades sociais a que ninguém estará alheio. Li que «o teatro é o último reduto onde o ser humano se pode reconhecer humano» – o sentir que passa, num espaço em que não conta a sua dimensão. Não foi preciso estar lá para perceber isso, bastava-me a confiança que me inspirava o brilho nos olhos e sorriso confiante de quem lidera este projeto. Depois, mais do que estar em cena é importante ouvir as reações das pessoas que têm participado e dos que são espetadores – gostam, acreditam e estou certo irão conseguir a tal autonomia que se pretende, num tempo que está destinado a que depois os moradores do próprio bairro sejam eles mesmos capazes de continuar esta arte de fazer teatro, até da própria vida.

    A vida nem sempre nos permite tudo aquilo gostaríamos de ter, às vezes de ser e muitas vezes de fazer - ao abrigo da crise são-nos retiradas camionetas de carreira que nos limitam no tempo a ligação direta entre Ermesinde e terras da Maia, já em horas tardias (fazendo-me declinar convites de pessoas cujos rostos passam a fazer parte do nosso quotidiano de vida). Uma pena!, tendo em conta que sempre existe tanta coisa que tem vida, muito para lá de horas que a convenção a que socialmente estamos sujeitos, nos convenciona. Para concretizar esta vontade, o tardio não ia ser impedimento, conforme decidi quando olhei para o desafio da Oficina de Teatro da minha terra: “Pé no Charco” – mais próximo de casa eu teria a autonomia de mobilidade que me permitia assistir a teatro, neste caso percebendo que tipo de mensagem me iria transmitir a peça “Nem morto”.

    A mensagem era tudo aquilo que nós sabemos e teimosamente fazemos questão em esquecer: nada levamos daquilo que consideramos nosso. Para isso, num palco e de forma satírica (que nos faziam soltar umas valentes gargalhadas), desfiava perante nós: a consciência, que teimava lembrar-nos que em pó nos transformaremos todos; um morto que não achava justo ter morrido – pela carreira de sucesso que tinha construído, o conforto de que usufruía e os bens materiais que tinha adquirido; uma esposa vazia de sentimento que “estava, como tinha que estar”; o valor da amizade que a avidez da vida não tinha deixado espaço para ser mais usufruída na sua verdadeira aceção; a hipocrisia de quem cedo esqueceria; a patetice da ostentação da vaidade e por fim – o antagonismo: a miséria e a carência.

    Carlos Drummond de Andrade diziaque «ir ao teatro é como ir à vida sem nos comprometermos». Até será assim, mas certo é que, com a força do desempenho do naipe de atores (que até pode ser só um) que se colocam num palco, interiormente sempre nos comprometeremos com alguma coisa. Escolhi caminhar no regresso a casa onde era acompanhada pelas estrelas e lembrava-me de algo que também já tinha lido – «no nosso ofício falo de teatro, não nos deixa provas. A posteridade não nos conhecerá. Quando um ator para o ato teatral, nada fica. A não ser a memória de quem o viu e, mesmo essa memória tem vida curta». Eu não sei se mais de quarenta anos é ou não uma memória curta mas muitas vezes me vem à lembrança aquela figura hirta e sumptuosa no papel que desempenhava Palmira Bastos, numa peça que começava com as pancadas de Molière (que me “suspendiam” para ver como seria a entrada em cena).

    Hoje, penso que efetivamente morrer de pé,nada tem a ver com viver-se toda a vida de joelhos. Todos nós vamos ser sempre os atores principais das nossas próprias vidas, conforme refleti depois de ter lido numa brochura que recolhi, em comemorações do Dia Mundial do Teatro: «…Toda a vida será palco, toda a parede mural e a cidade inteira poesia…». Será esse entendimento que faz com que, felizmente, as autarquias estejam atentas à cultura dos seus munícipes colocando-se ao lado dos grupos de teatro e artes que delas emergem. Por ser assim percebi que o teatro está à distância de uma vontade e isto porque eu, com 1 euro, mesmo que não tenha escutado as pancadas de Molière, pude assistir ao desfiar de uma vida, que poderia ser a de qualquer um. Tudo concentrado num morto, que acabou por aceitar ficar morto quando entendeu que a única coisa que podia levar de seu era... tudo aquilo que tinha sido.

    Por: Glória Leitão

     

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