40 ANOS DO 25 DE ABRIL
Diomar Santos - memória dos tempos de cinza e das eleições marcelistas em Ermesinde
O jornal “A Voz de Ermesinde” inicia neste número uma série evocativa dedicada à memória dos primeiros tempos que se sucederam ao 25 Abril em Ermesinde. O que interessará mais focar nestes artigos é a parte mais desconhecida das atividades desses tempos, correspondente a uma organização popular muito genuína, mas porque não (ou ainda não) organizada de uma forma partidária, ausente desses registos e, por isso mesmo, em perigo dessa memória se perder para sempre.
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Foto URSULA ZANGGER |
Atualmente membro da Assembleia Municipal de Valongo, militante do Partido Socialista, Diomar Santos viveu intensamente a política de oposição ao canto de cisne do fascismo, nos seus anos de juventude.
Em Coimbra, para onde tinha ido estudar Engenharia, viveu a grande crise académica e a crítica que a Associação de Estudantes, de que então era presidente Alberto Martins, impôs a Américo Tomaz na sua célebre visita à Academia.
Contaminado pelas ideias de liberdade que se espalhavam como um rastilho no meio estudantil, esteve ligado aos meios da Oposição que se arriscaram a defrontar o aparelho da União Nacional ( criada em 1930 para apoiar politicamente a ditadura), no ano de 1969, quando Marcello Caetano dá início à chamada Primavera Marcelista, permitindo então a participação da Oposição num processo eleitoral pretensamente democrático de escolha do Parlamento, e antes de em 1973, Marcello renomear a União Nacional de Acção Nacional Popular.
Em 1969, e para além de uma lista monárquica – a Comissão Eleitoral Monárquica –, de muito reduzida expressão (obteve 1 324 votos no total nacional, embora descontando que estes são os votos possíveis dentro do quadro da flagrante fraude e desigualdade de meios), as forças da Oposição agruparam-se em duas listas, uma de influência comunista e de muito maior importância, a Comissão Democrática Eleitoral, CDE (que em 69 obteve 114 745 votos), e a outra a Comissão Eleitoral de Unidade Democrática, CEUD, então menos relevante, de matriz socialista (que obteria nessas eleições 16 863 votos). Todos os 130 “eleitos” foram da União Nacional. Nas eleições de 1973, e depois do Congresso de Aveiro, estariam já sob uma única bandeira, a do Movimento Democrático, mas que acabaria por se retirar do sufrágio, considerando que não existiam, de forma alguma, condições para a realização de eleições livres.
Dessas eleições de 1969 em Ermesinde conserva Diomar Santos alguma memória que merece ser relatada.
Eram então os votos distribuídos não por uma Comissão Eleitoral independente que assegurasse a equidade do ato eleitoral, mas por sim cada uma das listas concorrentes. Assim, os boletins de voto, embora de formato igual, apareceram em papel de diferente gramagem, tornando de imediato identificável o sentido de voto de cada um.
Os Correios tudo faziam para dificultar a distribuição de votos da Oposição. Assim, qual não foi o espanto de Diomar Santos quando o carteiro devolveu para sua casa, já que tinha sido um dos elementos indicados para a Mesa de Voto pela CDE, uma enorme quantidade de boletins a devolver, com todas as razões imagináveis - “desconhecido”, “morada ilegível”, “mudou de residência”, etc., etc..
Não aceitando receber semelhante devolução, a que “não tinha direito”, dirigiu-se aos Correios e despejou as cartas devolvidas em cima do balcão, recusando deixá-las no saco, que era dele.
Vigorando uma distância mínima de 100 metros para entrega de votos, a CDE montou uma banca junto da Igreja, a uma distância superior à exigida em relação à Junta, onde decorreu então o ato eleitoral, para aí poder distribuir os boletins da CDE. O elemento de ligação desta a quem Diomar Santos foi buscar os referidos boletins de voto era o professor Teixeira de Sousa, de Rio Tinto.
Diomar recorda também uma peripécia motivada pela inexistente cultura política da época. Tendo a União Nacional andado a distribuir propaganda da sua lista, aconteceu que vários dos seus apoiantes se apresentaram na Mesa não com o boletim de voto mas com um prospeto de propaganda. Os membros da Oposição obrigaram então a que a distribuição do boletim de voto fosse também feita à tal distância de 100 metros, contra o incómodo do zeloso Manuel Simões, elemento da Junta de Freguesia que na época representava o poder e que, a dada altura do escrutínio, não se conteve e gritou euforicamente: “Já ganhamos!”, anunciando o resultado mais do que esperado, mas fazendo-o declarando o resultado com uma precisão milimétrica, como se tivesse visto os votos um por um.
Desses tempos de cinza recorda Diomar Santos algumas figuras que em Ermesinde, mais ou menos, afrontaram o regime. A mais notória seria a do médico Faria Sampaio, que aliás esteve com ele na referida Mesa de Voto, e que talvez fosse já então militante do PCP. Diomar Santos, por sua vez, acabará por aderir ao MES. Recorda também Adérito Moura, grande figura republicana ermesindense apoiante da candidatura de Humberto Delgado, que depois do 25 de Abril viria a filiar-se no PSD. Outro aderente do PSD que teria sido preso, aparentemente sem grandes razões para tal, antes do 25 de Abril, foi Joaquim Moutinho.
Evidentemente outras grandes figuras republicanas envolvidas na oposição ao fascismo e ligadas à cidade de Ermesinde deveriam ser honradas pela memória histórica, mas tal não é o objetivo deste artigo, que apenas procura introduzir o arrebatamento dos tempos que se seguiram ao 25 de Abril e, nesse sentido, recua um pouco, até ao período imediato que o precedeu.
Albino Maia e Paulo Emílio Martins foram dois dos companheiros de propaganda anti-fascista de Diomar Santos na CDE desses tempos muito opacos. A estes oposicionistas, entre outros, poderão juntar-se alguns militantes maoistas, certamente muito menos públicos, mas já muito envolvidos em atividades militantes, como José Paiva, hoje em dia anarco--sindicalista e Carlos Basto (que chegou depois a ser deputado municipal pelo Bloco de Esquerda e ao qual dedicaremos também um artigo), presos antes do 25 de Abril, e que foram membros de uma pequena organização maoista, a ARCO.
Quanto a movimentos coletivos civis, uma referência para o CPN, que foi o foco de uma atividade cultural incómoda, e onde também esteve Diomar Santos. Uma palavra ainda para uma pequena associação estudantil ermesindense, o Capa, por onde passaram figuras como Fernanda Lage, a diretora de “A Voz de Ermesinde”, ou ainda o atual vicepresidente da Câmara, Sobral Pires e, mais uma vez, o próprio Diomar Santos. Não abrigando qualquer atividade política ou até qualquer papel percursor nesse sentido, tornou-se importante por, ao nível dos costumes, ter permitido uma pequena emancipação feminina, numa altura em que ainda não era “próprio” as meninas saírem à noite.
Referência ainda a um pretenso núcleo de teatro mais ou menos clandestino, que na verdade funcionou mais como grupo de estudo e iniciação marxista, animado por Serafim Riem, que curiosamente, embora o tenha encetado com a divulgação de obras de Staline, foi militante reconhecido da trotsquista LCI logo a seguir ao 25 de Abril. Mais tarde foi dirigente do FAPAS.
São memórias dispersas e pouco alicerçadas em documentação, inexistente ou escassa e, por vezes, mesmo, entretanto destruída. Nesse sentido pedimos a compreensão dos leitores e, inclusive, a sua participação neste resgate das memórias.
Por:
LC
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