Na terra nasceu Portugal
Entre o doce acalento da noite por findar e a claridade tímida do dia que vem chegando, o lavrador transmontano ergue-se lesto para novo dia de trabalho. Da mesa-de-cabeceira não vem a estridência de qualquer aparato mecânico, hoje designado despertador, nem da janela gorjeio de ave madrugadora, estas já partiram buscando terras mais quentes, estamos em época de sementeiras (1) e elas migraram antes do S. Mateus (2). A mente do homem do campo está programada para acordar àquela hora e a rotina diária tudo deve a hábitos antigos. Em menos de um credo, deita mão à indumentária de trabalho – camisa de estamenha ou de estopa, calças e jaqueta de pardo – enfia, nos pés, meias de lã e socos ferrados de brochas (3). Tudo quanto o reveste é de confeção caseira ou obra de gente da terra. Os aldeões de ontem, como os de há séculos, constituíam comunidades o mais possível autossuficientes, interagindo mais com os vizinhos de aldeias próximas do que com os habitantes da cidade ou da vila. Iam ali apenas para pagar a décima, resolver algum problema de ordem administrativa ou para mercar animais nas feiras tradicionalmente estatuídas, mercearia, roupa e calçado fino o que era muito raro.
Pai Nosso que estais no céu…
O despertar temporão advém-lhe do costume adquirido desde a juventude quando pressentia que o pai já estava a pé. Agora, os seus filhos mais crescidos imitam-no. No decurso de inúmeras gerações, a ligação entre o homem e a Natureza era quase tão íntima como a que existia entre o homem e Deus. O homem considerava que a Natureza em que ele próprio estava incluído era obra de Deus, compreende-se, pois, a relação íntima que entre ambos se entreteceu.
Pai e filhos encontravam-se na cozinha, momento em que o (s) rapaz (es) cumprimentava (m):
– Deus le dê bôs dias, meu pai (ou: senhor meu pai).
– Bôs dias vos dê Deus - respondia a todos.
E cada um pedia:
– Bote-me a sua bênção.
– Deus te abençoe – respondia ele – E agora toca a trabalhar que Deus não abençoa mandriões.
As mulheres também já estavam a postos e preparavam o farnel que os homens levariam para o campo enquanto estes mastigavam, com urgência, o mata-bicho: cacho (4) de pão centeio e um cibo (5) de chouriça, gole de vinho ou de aguardente do recipiente que passava de mão em mão. Nem sempre os rapazes bebiam na presença do pai por extensão do dever de obediência e respeito. Se o trabalho fosse para o dia inteiro, a merenda era mais reduzida e o almoço seria levado, quando o sol estivesse a pino, por uma das mulheres da casa utilizando a burra como meio de transporte. Obrigatório havia de ser o pão, carne de porco, tivesse ou não passado pelo fumeiro, para acompanhar as batatas cozidas. Caso contrário, bastaria o pão, umas lascas de presunto ou rodaxas (6) de salpicão. Como quer que fosse, não poderia faltar a cabaça ou o pipo (7) que o esforço era grande e o vinho repunha as energias despendidas, assim pensavam eles.
Jungidas as vacas e apostas ao carro onde, com frequência, já repousavam arado ou charrua, a sacha (8), a grade, e o saco das sementes, carregados de véspera, seguiam a caminho da faceira (9). Nem todos iriam para o mesmo lugar, tudo dependia do plano determinado pelo chefe da família na noite anterior, à hora da ceia. Se a casa dispusesse de mais do que uma junta de cria (10), distribuíam-se, logicamente, as forças de trabalho. Os mais novos assim como as mulheres eram, muitas vezes, incumbidos de tarefas auxiliares como ir buscar comida fresca para dar aos animais no regresso da lavoura, mondar e regar a horta, acartar legumes e tubérculos para a vianda dos porcos. Como não havia água canalizada, era preciso ir buscá-la à fonte em cântaras ou jarros e a lareira tinha que ser mantida acesa pelo que havia precisão de bastante lenha que iam buscar ao sequeiro, cortá-la e levá-la em feixes consoante alcançavam os braços dos rapazes ou das mulheres.
Antes da sementeira, algumas etapas já tinham sido percorridas: durante o verão, os gados dormiam ao relento nas terras que se pretendia fertilizar, cercados por cancelas e guardados por cães enquanto, ao lado, dormia o pastor numa carreta (11); dos currais vinha o esterco produzido pelos animais domésticos ou retirado das estrumeiras dos caminhos e transportado para as terras a semear; aquando da decrua, após as primeiras chuvadas do outono, o estrume era espalhado e misturado com a terra; algum tempo depois, consoante a humidade presente no subsolo, as terras recebiam uma segunda lavra denominada vima; só então se procedia à derradeira lavra seguida do lançar das sementes que ficavam cobertas depois que os lavradores passavam a grade sobre a terra. O estado do tempo era determinante para a realização, com êxito, das sementeiras: um outono demasiado precoce e chuvoso tornava impraticáveis as tarefas do agricultor; o anormal prolongamento do verão fazia com que a terra perdesse sessão (12) e era necessário esperar que chovesse; além dos humores do tempo, valia o recurso aos conhecimentos herdados de gerações anteriores acrescidos de novas contribuições ditadas pela experiência quanto às vantagens ou inconvenientes de um desenvolvimento rápido ou tardego do cereal semeado e de que os provérbios eram precioso repositório. “Medra o cereal debaixo da neve como o cordeiro debaixo da pele”, “ Em janeiro sobe ao outeiro, se vires verdejar, põe-te a chorar, se vires terrear, põe-te a cantar” são exemplos dessa sabedoria antiga.” Ambos traduzem a mesma realidade: as condições atmosféricas – neve, geada, chuva bem distribuída – são fundamentais para que a esperança de uma boa colheita floresça no coração do lavrador. Os nevões de inverno eram auxiliares preciosos para que os rebentos não crescessem muito e viessem a ser queimados pelas geadas da primavera e para matar a bicharada da terra.
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Durante meses, a natureza fazia o que lhe é próprio e o olhar do aldeão acompanhava o evoluir das plantazinhas mimosas, até que a espiga despontava, alourava e ondulava ao sabor da brisa primaveril. Os lavradores partilhavam com seus pares alegrias ou tristezas, preocupações e desenganos. Em junho tinha início o período mais trabalhoso do ano agrícola: segar, atar os molhos e dispô-los em mornalheiras (13) no meio das courelas, acarrejar (14) os molhos para as eiras onde, pelo mês de agosto, se faziam as malhas. Pelos tempos fora, registaram-se melhorias graduais nos utensílios e maquinaria utilizados: modelos e eficácia das seitouras, dedeiras para proteção dos dedos mais expostos a qualquer descuido no seu manejo, malhos (15) para debulhar o cereal, máquinas de limpar; de debulhar; de debulhar e limpar; de debulhar limpar e ensacar; por fim de debulhar, limpar, ensacar, e enfardar a palha. Na última fase, o cereal seguia diretamente das searas para a tulha (16) disponibilizando as eiras para outros cultivos. Porém, antes que o centeio ou o trigo chegassem à mesa da família, duas etapas fundamentais tinham que ser ainda cumpridas: moer o cereal e cozê-lo consoante as necessidades do agregado familiar. Em quase todas as aldeias havia um rio e nele construíram moinhos que todos os moradores podiam utilizar. O cereal era até ali transportado por animais ou em carros de bois, descarregado e a moagem acompanhada por um membro da família que podia não ficar ali em permanência por necessidade de acudir a outros afazeres, mas alguém teria que vir, de vez em quando, verificar o andamento da laboração, ajustar o engenhoso dispositivo, reabastecer a tremonha, avaliar a qualidade da farinha, corrigir o curso da água de maneira que o rodízio mantivesse a mesma cadência. Uma vez terminada a tarefa, a farinha resultante era levada para casa, depositada em arca própria à espera de ser peneirada, amassada e, depois de lêveda, arranjada para ser cozida. Em muitas casas havia forno, em certas aldeias um ou mais fornos pertenciam à comunidade e eram utilizados à vez pelos moradores.
O pão nosso de cada dia nos dai hoje…
Através dos tempos, a palavra pão tem sido utilizada, quer para designar um produto alimentar específico, quer como metonímia de tudo quanto o homem utiliza para se manter. Das religiões, à literatura e à linguagem de comunicação diária, esse termo não carece de ser definido. Numa só palavra referimo-nos a toda a alimentação humana. Mas não era bem esse o significado que lhe dava o Beto, um miúdo que passava muitas dificuldades e que nem sequer um cibo de pão mastigava há bastante tempo. Isso não o impedia de brincar como qualquer criança da sua idade. Certa vez, foi merendar a casa dos seus ocasionais companheiros de brincadeira e recebeu, como cada um dos restantes, um bom carolo de centeio mas, ao terminar, lamuriou-se:
– Inda tenho tanta fome a pão!
A dona da casa apressou-se a satisfazer o pedido do rapaz, sabedora das dificuldades económicas da família.
Na generalidade, talvez possamos dizer que todos tinham centeio em suas casas e alguns teriam mais do que isso. A alimentação, em eras mais recuadas, seria bem frugal mas todos possuíam umas territas para cultivar o seu pão. Lembro-me de, um dia, ter visto o Salgado, rapaz forte e campeão no jogo dos paus que exigia músculo, a comer, consolado, uma boa fatia de centeio e uma cebola, no largo da aldeia. Filho de mulher pobre, não teria, certamente, outro conduto que mais lhe satisfizesse a gula porque não matavam porco e galinhas eram para ocasiões especiais.
O caráter do aldeão transmontano forjou-se na luta heroica e permanente contra um solo avaro e a disposição, nem sempre colaborante, dos elementos, na teimosa procura do “pão nosso de cada dia”.
(1) Sementeiras – O termo assim conhecido refere-se, apenas, ao cereal.
(2) S. Mateus – A festa deste santo comemora-se a 21 de setembro. Nesse dia terminava a caça aos pássaros que haviam debandado para terras mais quentes.
(3) Bro(t)chas – Tachas de ferro que os sapateiros pregavam na madeira dos tamancos.
(4) Ca(t)cho – Pedaço generoso, bocado.
(5) Cibo – Bocado mais pequeno.
(6) Rodaxas – Rodelas.
(7) Pipo – Recipiente de madeira com a forma de uma pipa mas com capacidade para cerca de dois litros.
(8) Sa(t)cha – enxada.
(9) Faceira – A área para cultivo do centeio tinha duas “folhas”. Em cada ano, utilizava-se uma ficando a outra de pousio; no ano seguinte, trocavam-se.
(10) Cria – Animais de tiro, bois ou vacas. Em certas localidades, lavrava-se com machos ou cavalos.
(11) Carreta – Construída em madeira, com o feitio de um carro de bois para mais facilmente ser transportada mas fechada, com uma porta para serventia do pastor e onde havia um colchão e roupa de cama.
(12) Sessão – Humidade presente no subsolo.
(13) Mornalheira – Local, sensivelmente a meio da terra segada, onde eram colocados, em roda, os molhos de centeio para mais facilmente serem carregados.
(14) Acarrejar – Ato de transportar os molhos para a eira onde formavam uma meda.
(15) Malhos – Manguais.
(16) Tulha – Arca grande com capacidade para grande quantidade de cereal.
Por:
Nuno Afonso
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