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Edição de 30-11-2024
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    Arquivo: Edição de 31-01-2014

    SECÇÃO: Crónicas


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    A camioneta da carreira

    De um ano para o outro eu recebia a prenda mais bonita que alguém pode querer – sentávamo-nos a uma mesa três gerações de mulheres. Usei-me já num papel de “matriarca” para influenciar a escolha do local: um restaurante que para mim sempre tinha simbolizado um ícone pois teria sido o primeiro snack-bar a instalar-se em Vermoim. Até esta altura não me tinha surgido nenhuma ocasião tão especial que me desse motivos fortes para viver aquele momento, também tão especial para mim.

    Fui a primeira a chegar e sentada numa mesa à janela, enquanto chovia copiosamente, olhava para o movimento da rua e lembrava todo aquele caminho que percorria a pé quando ia a caminho da escola que ainda hoje se mantém no mesmo local e se alargou, na dimensão de uma população escolar que cresceu, felizmente. Este caminho de mais de 2 Kms, era feito a pé quatro vezes, tendo em conta que no tempo do meu tempo tínhamos escola de manhã e de tarde – a refeição do meio-dia era feita em casa.

    Somente quando chovia tínhamos direito a ir na “camioneta do Cruz”, que fazia o percurso Ermesinde-Maia e vice--versa. Em dias de frio, chuva, nevoeiro ou sol era a pé que nos fazíamos ao caminho porque 1$00 cada viagem x 5 irmãos (que já na altura frequentavam a mesma escola) fazia diferença. Porém, esse caminho nunca se fazia sozinho – já alguém vinha de trás para nos chamar e pelo caminho íamos encontrando colegas que chamávamos às suas portas e passavam a acompanhar-nos. Desta forma e a tagarelar entre todos o caminho nem se sentia.

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    De regresso a casa, quando chegava ao ponto onde me deparava com um estabelecimento inovador para a sua época (ainda mais que estava ligado a um conceituado “jogador da bola”), gostava de lhe ver movimento. Ficava curiosa quanto ao conceito da refeição degustada ao balcão, que era apoiado pelos bancos giratórios. Mais tarde e noutros lugares para onde me conduzia a vida, este tipo de bancos serviam-me de distração para deambular o pensamento numa “forma giratória”, enquanto esperava para ser atendida ao balcão, um lugar que passou a merecer a minha preferência.

    Em tempos de agora e sentada naquela mesa gostei de ver que o conceito de mantinha e até as cores dos bancos giratórios pareciam-me ser as mesmas que via através daqueles vidros quando por ali passava nos meus tempos já não de menina mas sim de moça. Ainda bem que os momentos felizes não se esvaem porque agora, quando desço a pé avenida que me traz da Maia para terras de Vermoim, olho para aquele rés-do-chão, fico feliz por continuar a ver por lá vida e ainda posso adicionar ao meu registo de memória mais uns bocadinhos de momentos felizes, que me fazem companhia.

    No dia seguinte a este encontro de mulheres, completava as minhas lembranças quando passava no Outeiro e vi afixado um aviso numa paragem de autocarro – «De segunda a sexta-feira carreira para o Porto às sete e vinte». É lógico que a paragem já não está sinalizada por aqueles postaletes de pedra ou cimento de antigamente, mas o local de paragem era praticamente o mesmo de tempos da minha infância e mocidade. Não contava ler isto porque eu tinha pensado que a “camioneta da carreira” do meu tempo, tinha cedido a vez no seu todo, aos “autocarros azuis”.

    Já me tinha dado conta que “Nogueira da Costa” tinha crescido e adaptado aos ventos de mudança impostos pelo desenvolvimento rápido de uma sociedade que se tornava cada vez mais exigente. Contudo, naquele momento, percebi que não tinha ficado esquecida uma “carreira” que seguramente será feita por algum dos inúmeros autocarros que mantêm os tons de castanho para as identificar e o mesmo acontece no topo de um pequeno poste, onde orgulhosamente está um símbolo que marca o seu lugar de sempre, lado a lado com o azul de uma sociedade de transportes coletivos.

    De súbito lembrei-me que também a sua “sede” está lá, sempre no mesmo sítio, sempre no mesmo largo - que além de ser o ponto de partida para os autocarros que nos ligavam ao Porto, que nos transportavam nos passeios escolares e nas excursões de convívio e fé, servia também como local para marcar ponto de encontro para a escola – “esperas por mim em frente à garagem das camionetas”. Ali convergíamos nos encontros e também dali nos espalhávamos por caminhos que nos levavam de regresso a casa e que agora possivelmente será somente a saudade que terá tempo para os percorrer, a pé.

    Um dia li que “o Homem-abelha é aquele que vai para a rua fazer cera e volta cheio de mel”. Eu diria que é fazer da vida um pé de dança e “olhar tudo como se alguém nos contemplasse”, a tal frase de Epicuro que me diz tanto.

    Por: Glória Leitão

     

     

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