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Edição de 31-03-2024
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    Arquivo: Edição de 31-01-2014

    SECÇÃO: Literatura


    A VOZ DAS PALAVRAS

    Rui Costa partiu a 5 de janeiro

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    Rui Costa desapareceu deste mundo quando os seus últimos versos vieram ao mundo. Vida e morte não marcaram hora nem lugar, mas encontraram-se a 5 de janeiro. Ao mesmo tempo que família e amigos estranhavam o pesado silêncio do escritor, as 40 páginas de “Breve Ensaio Sobre a Potência”, cortadas e agrafadas pela madrugada, numa casa de Lisboa, abraçavam poemas novos. «E assim ensaiamos o livro entre a treva e a luz, o coração despedaçado rasgando novos arquipélagos», lê-se na estrofe final do livro publicado pela Língua Morta, pequena editora de culto, dias antes de se confirmar o falecimento do autor, natural do Porto, aos 39 anos.

    Culto era o que havia à volta dele e o reconhecimento ultrapassava já os circuitos marginais, por onde Rui adorava vaguear, qual gato vadio. Agraciado, na estreia, com Prémio de Poesia Daniel Faria, em 2005, pelo esgotadíssimo “A Nuvem Prateada das Pessoas Graves” (Quasi), Rui venceria também o prémio Albufeira de literatura, em 2007, com o romance “A Resistência dos Materiais” (Exodus). Publicou ainda “O Pequeno-Almoço de Carla Bruni” (Palavra Ibérica), “As Limitações do Amor são Infinitas” (Sombra do Amor) e organizou, em coautoria, a “Primeira Antologia de Micro-Ficção Portuguesa” (Exodus). Peças de teatro, traduções, textos dispersos por publicações nacionais e estrangeiras, têm o seu dedo. E haverá meia centena de escritos à espera de ver a luz do dia. Crítica literária e catedrática de literatura, Maria Alzira Seixo releva as suas ficções poéticas, em que o amor se opõe à tirania, e a sombra de pavor e conivência que cobre a vida é iluminada por figuras de redenção; numa escrita levíssima, que parece nem ter apoio no papel. Na Babel, repousa o seu último romance, à espera de publicação. Os “Diálogos de Adão e Eva” é uma obra de grande qualidade, reconhece Hugo Mendes, que o leu e aprovou, antes de sair da editora, em outubro, altura em que vários projetos foram suspensos por razoes financeiras.

    Rui Costa viera a Portugal por altura das últimas festas natalícias. Voltara à sua casa de Gaia, onde, noutras épocas, a mãe lhe preparava as refeições e alinhava a roupa que ele vestia. O regresso coincidiu com um intervalo no doutoramento em Saúde Pública, no Brasil, para onde Rui Costa se mudara há dois anos. Vivia no bairro de Santa Teresa, de forma algo espartana, rodeado de livros e discos, com um colchão no lugar da cama. «Na outra margem do rio maior…um lugar bacana no Rio com pássaros azuis e amarelos», como descreveu à amiga Marta Peneda, que lhe levara, há meses, garrafas de bom vinho português e “As Palavras e as Coisas”, de Foucault. Juntos, aventuraram-se na Rocinha pela mão de Castelo Branco, do Bando Cultural Favelados. Dançaram ao som de ritmos afro-brasileiros, trocaram experiências e Rui até prometeu juntar escritores de cá e de lá, fundindo talentos e projectos. «Pedimos por sua alma, que esteja em bom plano, e que de lá ele possa continuar nos ajudando», escreveu Castelo Branco, do outro lado do mar.

    Licenciado em Direito, Rui Costa abandonara a área jurídica, farto da «sabujice e facadas nas costas» das sociedades de advogados e refratário às molduras e convenções. «A atitude dominante do universo é o conservadorismo e a subserviência», desabafou, numa tertúlia poética na livraria Trama, em Lisboa. Ele era outra farinha, nunca desse saco. Ao contrário do que ocorrera anteriormente, desta vez o escritor não avisou a maioria dos amigos da sua chegada do Brasil. Em anos recentes, passara o réveillon em casa de Rui Lage, poeta com quem mantinha uma amizade firme e cumplicidades. Agora, mudara até o número de telemóvel. De Espanha, a poetisa Dolors Alberola, desesperou. Integrado num ciclo de leituras poéticas, em Jerez de la Fronteira, a 9 de janeiro, Rui Costa não respondia às tentativas de contacto, desde 14 de dezembro. O brasileiro Fred Ferraz teve mais sorte. Ainda jantou com o amigo no Calhambeque, no Porto, poiso de fervuras com sabor a comida de casa. «Acho o universo giro, sobretudo com umas boas sardinhas e um vinho verde muito frio à frente», dizia Rui, num dos seus repentes desconcertantes. Ele e Fred tinham em comum mais do que as guitarras, no Grupo Mana Calórica, projeto musical liderado por António Pedro Ribeiro, amigo de ambos. «Era um coração espetacular, um criador e um artista do mundo decidido a experimentar todos os tipos de arte. Com ele havia sempre festas e copos, mas, neste regresso, parecia triste com a vida…»

    Nada que causasse especial estranheza. Quem o conhecia habituara-se a vê-lo desaparecer sem deixar rasto. Ora encantado por uma namorada nova – «Gosto de mulheres; têm problemas no motor de arranque, mas são muito mais surpreendentes do que os homens» – ou entregue à urgência do recolhimento. «Se algum pensamento seu espalhasse a sua sombra à nossa volta, isso era a sua veia criativa a reclamar afastamento e retiro», recorda o amigo, também escritor, Fernando Esteves Pinto. Desta vez não foi. Esteves Pinto prometera-lhe guarida na sua casa de Olhão até abalarem para o encontro poético, em Espanha. Mas a ausência de notícias deu lugar à angústia. Amigos mobilizaram-se nas redes sociais e em contactos pessoais. Soube-se, depois, que Rui fizera um levantamento num multibanco de Canidelo, em Gaia, na quarta, 4 de janeiro, à noite. Houve quem procurasse o carro numa valeta ou precipício, mas o veículo apareceria estacionado junto ao Edifício Mota Galiza, próximo da Ponte da Arrábida, no Porto. Dentro do automóvel, o casaco de couro, o telemóvel e a carteira. O corpo, com as chaves de casa no bolso, foi encontrado mais tarde, na Afurada.

    Era uma alma em desassossego, com olhar de infinito. Perfecionista, não se contentava com um verso qualquer, assinala Rui Lage, para quem a escrita de Rui Costa revelava «um poeta no sentido herbertiano, difícil, torrencial, metaforicamente rico». Queria, ele o disse, «pôr as coisas fora do lugar».

    Noutros tempos, viam-no muito no Piolho, no Pinguim ou no Pucaro’s, o bar de Miragaia onde as noites de poesia fizeram história. Valter Hugo Mãe descobriu aí um «homem demasiado inteligente para se ficar pela mediania das coisas», capaz de, «em cada livro revelar sempre um excecional punhado de versos». Tinha momentos de rispidez e ternura. Doce ou intratável, levava o carimbo de arrogante ou provocador, consoante os amores e os humores de quem o ouvia, mas sempre com postura «despretensiosa e desprendida em relação ao seu trabalho como escritor», segundo Rui Manuel Amaral, fundador da revista literária Águas Furtadas e parceiro de almoços no Café Ceuta. Se algo o tirava do sério, os compadrios e as capelinhas literárias vinham à cabeça. Por isso, de forma desabrida, comprou a maior das suas guerras, candidatando-se, em 2009, à Presidência do Pen Clube. Ao seu lado, Nuno Júdice, Rui Lage, Filipa Melo, Isabel Pires de Lima, Fernando Pinto do Amaral, entre outros. «Era franco, sincero, desafiador – e eu aprecio muito a franqueza, odeio delicadezas fingidas», observa Maria Alzira Seixo, vogal da lista. «Os votos foram contados duas vezes e a contagem não dava certa», exemplifica, para ilustrar um processo ferido de irregularidades. «Foi tudo transparente», garante Teresa Salema, que ganhou. «Mesmo com excessos, Rui Costa mexeu com mentalidades», reconhece a atual presidente.

    Confiando nisso, Maria Alzira Seixo leu, na assembleia-geral do Pen Clube, a 23 de janeiro, uma moção subscrita por ela própria, Vasco Graça Moura e membros da antiga lista. Manifestava-se «pesar pelo desaparecimento de Rui Costa» e «pela sua atividade no Pen». Os termos da moção foram rejeitados e substituídos por um simples voto de pesar. «Só me saem duques!», diria Rui, ao seu estilo, se cá estivesse.

    O PÃO

    Há pessoas que amam

    Com os dedos todos sobre a mesa.

    Aquecem o pão com o suor do rosto

    E quando as perdemos estão sempre

    Ao nosso lado.

    Por enquanto não nos tocam:

    A lua encontra o pão caiado que comemos

    Enquanto o riso das promessas destila

    Na solidão da erva.

    Estas pessoas são o chão

    Onde erguemos o sol que nos falhou os dedos

    E pôs um fruto negro no lugar do coração.

    Estas pessoas são o chão

    Que não precisa de voar.

    (*) [email protected]

    Por: Ricardo Soares

     

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