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    Arquivo: Edição de 15-12-2013

    SECÇÃO: Literatura


    A VOZ DAS PALAVRAS

    O Viajante sem sono

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    Padre desde os 24 anos de idade, José Tolentino Mendonça afirma que a sua vocação religiosa «foi uma coisa da juventude, inconsequente, imprudente, inesperada, que eu procuro manter. Ser padre é (...) aceitar a pobreza como condição. E a pobreza é uma coisa chata de viver. É achar que isso pode ser uma forma de dizer alguma coisa ao seu tempo». Além de padre é poeta, ensaísta, e tradutor do "Cântico dos Cânticos", professor de Estudos Bíblicos na Faculdade de Teologia da Universidade Católica de Lisboa. Tolentino de Mendonça é um dos mais celebrados poetas da sua geração. Em dezembro de 2011 foi nomeado consultor do Conselho Pontifício da Cultura. É o responsável nacional pela Pastoral da Cultura e, recentemente, foi também nomeado Consultor do Pontifício Conselho para a Cultura no Vaticano. A sua poesia apresenta, segundo a crítica, uma linguagem pura e límpida, um tom sublime e belo, uma delicadeza aparente aliada a uma profunda sabedoria. O livro “O Viajante sem Sono” foi o vencedor da terceira edição do Prémio Literário Fundação Inês de Castro.

    «É bom estarmos aqui», disse Pedro a Jesus, citado na epígrafe de "O Viajante sem Sono". Este exemplar, um precioso livro que prossegue, sem grandes mudanças de orientação, aquilo a que poderíamos talvez chamar uma investigação estética do mundo e dos seus mistérios; há um trabalho cuidado das palavras e dos silêncios.

    Os quatro versos iniciais do primeiro poema (intitulado "Para ler aos noviços") definem desde logo uma fronteira: «Deus não aparece no poema / apenas escutamos a sua voz de cinza / e assistimos sem compreender / a escuras perícias». Embora o poema seja o «acto espiritual por excelência», como recorda uma epígrafe de Levinas, Tolentino separa a experiência religiosa da experiência poética, o nome de Deus é indizível, aparta a luz da fé das «escuras perícias» a que a escrita o conduz: «Só há um modo verdadeiro de rezar: / estende o teu corpo ao longo do barco / que desce silencioso o canal». O corpo é a atualização executável da alma, a única jangada com que podemos contar para a mais escura das caminhadas: caminho para a morte, busca de um sentido que nos ilude e quase nunca chega a tempo. Repare-se como, por exemplo, se cindem o transcendente e o corpóreo – «rezar» / «corpo» –, sem que a transição propriamente o seja, e como uma da outra escoam em correlação.

    O horizonte de alguns destes textos até pode ser a revelação de uma verdade, o «infinito alcance», a epifania que ilumina, mas o poeta sabe que os trilhos para lá chegar são impraticáveis: há sempre um vento gelado que os apaga, ou declives e intervalos que os desviam para «aonde ninguém sabe».

    Esta é uma poesia do espanto e do «louvor» diante da beleza mais pura das coisas, beleza sentida na pele – «por uma elipse, um rasgão, uma alteração cutânea» – mas impossível de nomear. Porque «o mundo é aquilo que nos separa do mundo» e estamos sempre à mercê da «ordem aleatória do tempo», sem o conforto sequer de uma «certeza culminante». Quando José Tolentino Mendonça escreve que «o mundo é aquilo que nos separa do mundo», sabemos que o primeiro “mundo” é o mundo mundano, e o segundo é um mundo mudado. Não vale a pena pensar que o mundo é um inimigo, o mundo é sobretudo um problema – «o mundo está sempre a florescer / Longe de mim diminuir o louvor» – e, frisa mais à frente – «Talvez nos caiba viver por cidades estranhas / em casas que esconderão sempre o seu medo / e a sua glória / sós diante dos céus / sem a certeza culminante». A matéria do poema é mineral, feita de nácar e osso, húmus e folhas mortas, uma matéria que se inclina e «desliza». A transcendência não se procura, encontra-se: «Imaginamos lugares estritos / para o sublime que vem afinal / depositar-se à nossa soleira».

    No poema, cabe tudo. De segredos, em grande medida, se constrói este livro, de uma voz que se pressagia mais do que se ouve em pleno. A perfeição e a trivialidade, a verdade e o erro, «correntes marítimas em vez de correntes literárias», uma «paciência quase animal», uma conformada dubiez. Sugere que a atenção e a aceitação fazem com que o mundo não se oponha ao mundo. Daí estes cuidadosos versos sobre Jacob e o anjo, sobre Rothko e a identidade instável, sobre os castanheiros ou essa «bicicleta caída junto às primeira paixões sombrias». As palavras que atribui a Lourdes Castro, Tolentino Mendonça podia tomá-las (e toma-as) para si mesmo: «A minha arte é uma espécie de pacto: / não distingo as áreas selvagens das cultivadas / e elas não distinguem a minha sombra / da minha luz».

    Aqui o poeta lembra que «o poema faz parte do real», acrescentando que «o poema é a inevitabilidade de uma experiência humana». Quanto a esta obra, “O viajante sem Sono”, o poeta, ao escrevê-la, disse lembrar «alguns amigos que partiram, que morreram», embora queira lembrar, também, «amigos vivos e dizer-lhes que a poesia é uma forma de partilhar com eles o lume».

    Estamos em dezembro e aproxima-se a época natalícia, seria uma boa escolha partilhar estes versos junto do mundo, das gentes que o habitam e dos que moram dentro de nós.

    (*) [email protected]

    Por: Ricardo Soares

     

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